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Visita AD LIMINA APOSTOLORUM

1. De 20 a 24 de maio, os Bispos das 21 Dioceses de Portugal estiveram em Roma, em visita ad limina apostolorum. É claro que, com cada Bispo, era também toda a sua Diocese que ia. A comunicação social que temos, nas coisas da igreja, navega habitualmente junto à costa, deixando à tona do texto a espuma dos seus preconceitos, raramente se aventurando a entrar no mar profundo dos factos, dos detalhes, que requerem sempre tempo, sabedoria, verdade, conhecimento da realidade e domínio do vocabulário. Assim, se foi escrevendo, de modo fútil, que os Bispos iam a Roma, ao Papa, “prestar contas”, e coisas semelhantes, e até se aventuraram a elencar os assuntos sobre os quais se prestariam as ditas contas. O seu a seu dono, portanto. A Bíblia mostra-se muito dura para com estes faladores e escrevedores e vendedores de futilidades e das verdades deles ou das mentiras deles, e refere que quem assim se exprime «fala com um coração e um coração» (Salmo 12,3; Ben Sira 1,28) ou «com uma língua e uma língua» (Ben Sira 5,9; 6,1). É assim que a Bíblia diz a mentira e a duplicidade. Contra esta duplicidade, sempre doentia e prejudicial, e, tantas vezes mesmo mortal, o sábio sentencia outra vez certeiramente: «Um golpe de açoite deixa marcas,/ mas um golpe de língua quebra os ossos./ Muitos caíram à boca da espada,/ mas muitos mais por causa da língua» (Ben Sira 28,17-18). Nada disto tem a ver com a visita ad limina, ou mal andaria a Igreja!

2. Na verdade, a visita ad limina apostolorum é uma verdadeira peregrinação aos túmulos dos dois grandes e Santos Apóstolos Pedro e Paulo, na sua qualidade de testemunhas imensas de Cristo Crucificado e Ressuscitado. Trata-se de lhes levar a expressão da nossa gratidão e veneração, e aprender deles a dar testemunho de Cristo, como fizeram eles em modo de excelência. A Igreja do Oriente ainda hoje acomuna os dois Apóstolos Pedro e Paulo com o título de Prôtóthronoi, os «primeiros na cátedra» da doutrina divina e salvífica. A Igreja de Roma já existia antes da chegada de Pedro e Paulo, mas venera-os como verdadeiros «fundadores», pois só com eles se vê como Igreja «Apostólica», coração de Pedro, coração de Paulo. A própria iconografia, em inumeráveis representações, junta os dois Apóstolos e Mártires, já desde os séculos II e III, sinal da veneração que os fiéis de Roma e do mundo inteiro lhes dedicavam. Veneração verificável, de resto, no facto de os túmulos dos dois grandes Apóstolos e Mártires serem a meta da única peregrinação do mundo cristão antigo.

3. A visita ad limina apostolorum tem de ter esta dimensão primeira e intensa. Para uma visita desta natureza não se pode ir de ânimo leve, com meia dúzia de folhas na pasta ou debaixo do braço, ou com «um coração e um coração» ou «uma língua e uma língua», isto é, com uma superficialidade mentirosa e fútil. Só se pode entrar na Basílica de S. Pedro, no Vaticano, e visitar o seu túmulo, e na Basílica de S. Paulo fora de muros, e visitar o seu túmulo, «empenhando o coração», isto é, “pondo o coração no prego”, no sentido apontado por Jeremias 30,21, em que «empenhar o coração» (ʽarab ʼet-libô) significa pôr o coração numa casa de penhores. Atitude de vida ou de morte, portanto. É como subir a um poste de alta tensão. Por isso, também a palavra “visita” assume o seu verdadeiro e alto significado, derivado do verbo latino visito [= ver muitas vezes, contemplar], intensivo de viso [= ir ver, fazer reconhecimento], por sua vez intensivo de video [= ver, campo de visão]. Ver com o coração, ajoelhar-se, prostrar-se em acusativo, modo de serviço, e não sentar-se em nominativo, modo patronal.

4. Foi com este espírito que eu fiz esta visita ad limina apostolorum. Visitar os dois grandes Apóstolos Pedro e Paulo e receber o testemunho que deram de Cristo implica também visitar o Bispo de Roma, o Papa, coração de Pedro, que preside à caridade de todas as Igrejas, para o dizer com as palavras precisas de S. Clemente Romano, que datam já da última década do séc. I. Assim foi feito, não para “prestar quaisquer contas”, trabalho de merceeiro, mas para sentirmos o pulsar do seu coração e sentir as suas alegrias e preocupações, e apresentar-lhe também as alegrias e preocupações das nossas Igrejas particulares. Abriu-se assim um belo, cordial e sentido diálogo de quase duas horas. E garanto que não houve papéis. E quem os levava com a intenção de os ler, foi pelo Papa convidado a arrumá-los. E garanto também que os assuntos antes alinhavados de cor pela comunicação social que temos nem foram sequer soletrados.

5. No diálogo havido, esteve presente, isso sim, Jesus Cristo e o serviço que, com Ele, devemos prestar aos nossos irmãos. No decorrer do diálogo, emergiu como grande preocupação a transmissão da fé, cada vez mais difícil de levar por diante, tendo em conta a crise profunda que atravessa a instituição familiar e a sociedade em geral, sem esquecer que também no seio da Igreja baixaram muito os índices testemunhais. Bem sabemos, todavia, que esta missão não era mais fácil no tempo de Pedro e de Paulo, e que estes souberam, através do seu testemunho qualificado, fazer nascer e crescer a fé em Cristo, que ardia nas suas vidas. Daí a importância de que se reveste, nos tempos de hoje, esta visita aos túmulos de Pedro e de Paulo. Visitar e revisitar estas vidas a transbordar de Cristo, para fazermos nosso o seu testemunho, é o caminho da Igreja nesta sociedade desencantada, anestesiada, desinfetada e muito medicada. Só a vivência qualificada da nossa fé em Cristo e a transmissão dessa fé mediante o nosso testemunho ardente podem transformar o rosto da Igreja e do mundo.

6. Houve também muito cansaço acumulado, pois fazíamos por dia cerca de doze quilómetros a pé. Também como Pedro e Paulo. Outro problema muito aflorado foi o impacto que terá na Igreja e no mundo a Inteligência Artificial. E muitos outros pormenores ocorreram, mas seria fastidioso estar agora aqui a enumerá-los todos. Dizem os homens do futebol que os jogos se decidem nos detalhes. Há um velho provérbio alemão que diz que «Deus se encontra nos detalhes». E foi assim. E é assim. Deixemos, pois, a retinir o grito de Isaías, o profeta: «Vós que sois os secretários (mazkkirîm) do Senhor,/ não há descanso para vós,/ e nem sequer a Ele dai descanso» (62,6-7). Ou então a confissão de Karl Barth, que refere que, quando começou a entrar a sério pela Carta aos Romanos adentro, para preparar o seu Comentário publicado em 1918, se sentiu completamente abalroado, como um homem que, agarrando no meio da escuridão uma corda para se segurar, descobre que puxou a corda de um sino que terá produzido um rumor capaz de acordar os mortos! Coração de Pedro, coração de Paulo, coração do Papa, coração da Igreja. E tantos desafios pela frente. Ou talvez apenas um.

 

+ António, Bispo de Lamego

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