1. A nossa rocha firme, o nosso auxílio sempre pronto, o nosso rochedo seguro, o nosso Montemuro, és Tu, Senhor! «Porque Eu estou contigo», dizes Tu, Senhor, a Jeremias (Jr 1,19), e arranca-lo do lodo, da mão das turbas, do turbilhão das águas turvas, das areias áridas do Nilo. Nem Deus saiu do céu, nem Jeremias subiu deste chão áspero e agreste, como é, muitas vezes, o nosso empedernido coração. Não! Com carinho, dobrou Deus o céu como um colarinho, e com ele teceu uma mortalha que, como uma toalha, envolveu o corpo de Jeremias. De Jeremias e de João, a quem o tirano e aldrabão Herodes Antipas mandou cortar a cabeça, mas já antes João Batista lhe tinha lancetado o coração! Preso ou não, na fortaleza de Maqueronte, ou simplesmente neste chão embotado e enlodado, Jeremias e João saberão sempre que Deus está com eles, do lado deles, e que Sedecias e Herodes não passam de canas agitadas pelo vento, que apenas sabem fazer jogos palacianos, com cabeças à venda e passos de dança à vista, saias rodadas como espadas, e serviço à lista!
2. «Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi a vós» (Jo 15,16). Sim, escolhidos desde antes do seio materno (Jr 1,5), desde antes da criação do mundo (Ef 1,4), desde antes de antes. E acrescentemos, sempre guiados pela Escritura Santa, aberta e lida, desde sempre escolhidos, amados, predestinados, agraciados, redimidos, mortos, sepultados, ressuscitados, vivificados, cristificados, glorificados (cf. Rm 6,1-11; Cl 2,12-13), para sermos «filhos no Filho», filiação divina (hyiothesía) por graça recebida (cf. Rm 8,15-16; Gl 4,5; Ef 1,5; Gaudium et spes, n.º 22), feitos semelhantes a Deus e vendo-o como Ele é (cf. 1 Jo 3,1-2). Eis o que constitui o verdadeiro cume da vida dos filhos de Deus, em sentido muito explícito, denso e misterioso. De maior e de mais belo, nada! A nossa maneira de viver e de fazer não é o corolário da visão de Deus; é a própria visão de Deus. Ai de nós se os nossos olhos já não veem Deus! Ai de nós se não mostramos Deus, se não damos Deus a ver, se não pomos Deus à vista. Não à lista.
3. Tudo isto para dizer o que penso ser possível dizer e dever dizer do «servo bom e fiel» (cf. Mt 24,45), próximo, humanado, dedicado, humilde e humilhado, portanto, exaltado (cf. Is 52,13), até ao ponto de se sentir com todos irmanado, que foi e é o bom filho desta terra de Santa Cristina de Tendais e da Diocese de Lamego, D. António Francisco dos Santos. Aqui nasceu em 29 de agosto de 1948, filho único de Ernesto Francisco, e de Donzelina dos Santos. Por que nasceu a este casal este menino, com esta alma, este coração, esta paixão? Sim, já estou a contar com a herança genética dos seus pais e de outras gerações ascendentes que o precederam. Mas mantenho a questão: por que nasceu este menino, e não outro, com outras caraterísticas, outra maneira de ser, de pensar, de dizer, de sentir, de viver? Sim, porquê este D. António Francisco, e não outro, porventura com o mesmo nome, mas diferente no modo de ser e de viver? Vergam aqui todas as perguntas, e caem por terra todas as respostas, e é no umbral do mistério que ficamos, quer queiramos quer não, amados irmãos e irmãs. Ficamos, pois, à porta da casa de Deus, e ficamos bem. Deu Deus este D. António Francisco aos seus pais, à sua comunidade paroquial, às suas Dioceses, à Igreja, a todos. Era dotado de uma inteligência ingénua, quero dizer, intuitiva e penetrante, rápida, desarmante, como uma criança. Não era difícil pôr D. António Francisco a apanhar gambozinos! Como uma criança deslumbrada, e sempre levada pela mão de Deus, e tendo disso plena consciência, António Francisco traduziu entre nós o amor verdadeiro de que fala S. Paulo: «tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta» (1 Cor 13,7). E é sabido: o amor verdadeiro está lá sempre primeiro!
4. Em boa verdade, sou dos que penso que poucas coisas nos é dado verdadadeiramente escolher. Sou cada vez mais levado a ver que o veio mais fundo e fecundo que vai urdindo a nossa identidade e unicidade – que é aquilo que só eu posso fazer, e ninguém pode fazer em vez de mim! –, não depende das nossas heranças genéticas ou outras nem de nenhuma das nossas escolhas, pois vem de antes de nós, de antes de a nossa memória registar qualquer sinal, de antes de podermos avançar algum ato meritório, de antes do ventre materno, de antes de antes. Vem do «amor fontal» de Deus, nosso Pai (Ad gentes, n.º 2). Nós não escolhemos Deus nem o Amor nem o Bem. Deus entra-nos pela casa adentro, sem bater à porta e sem pedir licença, e elege-nos, sem previamente nos ouvir, marca-nos com uma eleição que não prescreve nunca, confia-nos uma missão que não podemos rescindir, entrega-nos um Amor a que não nos podemos subtrair.
5. Penso que foi assim que viveu e morreu o meu irmão, D. António Francisco. Dia-a-dia vivendo, saboreando e respondendo a Deus e ao próximo mais próximo com um amor imenso e intenso, uma liberdade dada, recebida e agradecida, uma responsabilidade bela e integral, que é o dom de responder também por aquilo que não foi ele que fez. Amor, liberdade, responsabilidade que não pôde parar e de que não pôde fugir. Caiu-lhe nas mãos e no coração a condição de uma impossibilidade a que não se pôde subtrair. Impossibilidade mais impossível do que sair da própria pele, dever imprescritível e irrecusável que amorosa, livre, responsável e traumaticamente para sempre o marcou. Sim, há em D. António Francisco uma proximidade nova, que não se mede a metro, entenda-se, pela distância, muita ou pouca, entre as pessoas. É assim que nos atinge a responsabilidade pelo outro (verdadeiro sentido da proximidade), responsabilidade na aceção nova que me obriga a responder ao outro e pelo outro, portanto, por aquilo que não fui eu que fiz, e não apenas na aceção clássica, filosófica, jurídica, social e cultural do «eu», como senhor mais ou menos civilizado, que responde apenas pelo que faz. Esta transformação e conversão da proximidade em responsabilidade pelo outro deixa-nos no terreno da socialidade, que é ver o rosto do outro, e não o transformar num conteúdo que eu posso absover, integrar, dominar, controlar. Sim, o rosto do outro, de qualquer outro, mas sobretudo do pobre e do desvalido, está a uma altura tal a que eu não posso chegar nem apanhar! Só me posso ajoelhar e responder: «Eis-me aqui», disponível para te servir e para te amar. Esse rosto enrugado, esse olhar nu que se fixa em mim, é a verdadeira cátedra de onde Deus me ordena amar e servir!
6. O que fica dito, de teor muito bíblico e levinasiano, é para deixar o meu irmão, D. António Francisco, completamente na mão de Deus, ao dispor de Deus, ao sabor de Deus. E a viagem em que há 70 anos embarcou, mas que já vinha muito de trás e que continua, ao mesmo tempo transitiva e intransitiva, mais intransitiva do que transitiva, é sempre escrita fina de Deus, com ponta de diamante, na tabuinha do nosso coração. Quero dizer, para sempre escrita e oferecida ao esforço da leitura, como aquela viagem para Emaús e de Emaús, com os nossos olhos esbugalhados de espanto perante aquele ignorado companheiro que aparece sempre no nosso meio, quer quando faz perguntas fáceis para as nossas respostas sempre erradas e mirradas por míngua de leitura e compreensão, quer quando nos prega um bom par de fintas pedagógicas, quer quando bendiz e parte o pão, quer quando parece que desaparece, e nos deixa finalmente a contemplá-lo bem presente nessa ausência. Está cá sempre no meio de nós. Mas às vezes só nos apercebemos de que estava e está connosco, quando parece que desaparece, e deixa de estar connosco! Aqui tenho de parar um bocadinho para rezar, e para Te dizer: obrigado, Senhor, pelas tuas inúmeras fintas pedagógicas.
7. Vê-lo não é, nunca foi, mérito nosso. É Ele que se faz ver a nós, por graça. É por isso que muitas vezes só reparamos n’Ele quando Ele desaparece da nossa vista, mas já de há muito, desde sempre, está instalado no hardware do nosso coração. O Centurião de Cafarnaum viu bem e rezou bem: «Senhor, eu não sou digno de que entres em minha casa, mas diz uma Palavra e o meu servo será salvo!». Na verdade, em nenhum outro Nome há salvação. Bem o sabia também D. António Francisco, por quem e com quem rezamos hoje, nesta encosta do Montemuro, à volta deste Altar e daquele tal Senhor, que está sempre no meio de nós. Hoje, meu irmão António Francisco, pedimos-te perdão por esta ousadia! Não leves a mal: as Igrejas que tu, generosa e dedicadamente serviste (Lamego, Braga, Aveiro, Porto), quiseram deixar ficar aqui este testemunho de gratidão, para falar de ti a quem quer que por aqui passe. Hoje, meu irmão António Francisco, pensamos, também porque tu nos ensinaste, que o amor vale a pena, que a generosidade vale a pena, que a paixão vale a pena, que a ternura vale a pena. Hoje, meu irmão António Francisco, falamos ao Senhor de ti. Fala tu ao Senhor de nós. Amém.
S.ta Cristina de Tendais, 29 de agosto de 2018
+ António Couto, Bispo de Lamego