PARA UMA SOCIEDADE COM ROSTO
A questão do Outro é a questão do Ocidente
Emmanuel Levinas (1906-1995) escreveu que «a história da filosofia Ocidental foi uma destruição da transcendência». Na sua esteira, o também hebreu e professor de história moderna, Jacob Leib Talmon (1916-1980), assume que, «na história da humanidade, não se consegue encontrar uma revolução de tão vasto alcance como a perda da fé numa Providência que vela sobre os homens e sobre a sociedade, e a guia para uma solução racional e salvífica». Este desfalque nefasto é tudo o que resulta de um Ego cogito que põe a consciência, de facto e de direito, como absoluta, fonte e fundamento da sua própria verdade e liberdade, portanto como «ateia», separada de todo e qualquer princípio exterior a ela. Destruição da Transcendência, arrasamento da Providência, nenhuma paternidade ou fraternidade (Jean-Luc Marion), labiríntica orfandade, escuridão, solidão (Martin Heidegger). Torna-se, então, visível daqui que a questão do «outro» é hoje a questão do Ocidente, sendo sobre ela que se mede a crise em que vive, e se abre a possibilidade de superar a desorientação que nos afeta. Jacques Derrida, no seu A-Deus a Emmanuel Levinas, vinca bem que a ideia do Outro, e a relação com os outros que daí deriva, é como um novo início da filosofia, início de uma nova racionalidade «de outro modo que ser». O traço fundamental do ser é a perseverança no ser, o espinoziano conatus essendi. A questão do Ocidente não é a questão do ser ou da ontologia, mas a questão da ética, sendo que a ética não são os valores, mas os rostos. E aqui o bom-dia precede o cogito.
1. O senhor «eu»: eu penso, eu compro, eu sou visto, eu, eu, eu…
O senhor «eu» enche a modernidade. A luz da modernidade é a razão que quer iluminar todas as coisas, querendo assim compreender, com o que há de «prender» no «compreender», toda a realidade. Esta luz da razão produz identificação e emancipação. Identificação é a redução do «outro», de todo o «outro», à esfera do «eu», e emancipação é como que o «evangelho» de um mundo finalmente libertado de todas as dependências. Diz, a propósito, Karl Marx (1818-1883) em Sobre a Questão judaica (Zur Judenfrage) (1844): «A emancipação é a recondução do mundo e de todas as coisas ao homem, para fazer do homem, não mais o objeto, mas o sujeito da sua própria história, do seu próprio destino», indo ao encontro de Immanuel Kant (1724-1804) que, na sua «Resposta à pergunta: “O que é o iluminismo?”» (Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung) (1784), tinha deixado claro que a essência da modernidade está no «Ousa saber» (sapere aude, de horaciana memória), que implica a coragem de sair do «estado de menoridade», cortando todas as ligações com o que é exterior ao «eu» (mito, tradição, religião), e afirmando a razão humana, a consciência humana, como independente de qualquer vínculo exterior ou exterioridade.
Trata-se, na verdade, de estabelecer a consciência humana, de facto e de direito, como absoluta, fonte e fundamento da sua própria verdade e liberdade, separada de todo e qualquer princípio exterior a ela, em que o Ego cogito passa a ser a única pedra-base sobre a qual assenta o inteiro edifício do mundo. É também a lição do sociólogo polaco Zygmunt Bauman (1925-2017), um dos melhores leitores da sociedade hodierna, que afirma em a «Modernidade líquida»: «A situação atual nasce da radical obra de demolição de todos os impedimentos e obstáculos de um modo ou de outro suspeitos de limitar a liberdade individual de escolher e agir». A essência da modernidade é, portanto, a instituição da autonomia como única chave de leitura do humano, a que acresce a afirmação de que qualquer forma de heteronomia é pura alienação. Aí está o mito cartesiano do «Eu penso» («Ego cogito»), que supõe um Cogito que tem instalado em si o seu ser e o seu pensamento de maneira mais segura do que ter os pés no chão. Como se vê, o homem Descartes (1596-1650), arvorado em senhor absoluto, liquida de um só golpe a ideia de criação (Deus) e a ideia de geração (mãe), pondo Deus de lado e esquecendo a sua mãe.
Neste verdadeiro redemoinho em cujo centro está o imperialismo do sujeito, o «eu» emancipado, senhor absoluto de tudo, é removido também o próprio nascimento que me fazia recebedor da vida de alguém, pois ninguém nasce sozinho, sem umbigo, ninguém nasce sem mãe, querendo com esta remoção passar a ideia de que o «eu» se põe sozinho no ser pelo seu próprio pensamento, criatura híbrida pelo pensamento gerada, um universal fantástico produto da mente (Adriana Cavarero), e nada fica a dever a ninguém, quer no plano genético, quer cultural, quer social, quer tradicional. Nenhuma conceção (biológica, cultural, social, tradicional) se impõe ou antepõe ao «eu» emancipado, senhor único de tudo, que está sozinho na origem de tudo. E vê-se bem também daqui a posição daquele filho que pretende levar os pais a tribunal pelo simples facto de o terem trazido à vida sem o ouvirem (!), a opção em crescendo pela apostasia, com a soberana decisão pessoal do cancelamento do batismo, que traduz a anulação da pertença a uma comunidade religiosa, o querer estabelecer que o masculino e o feminino não resultam do nascimento, mas de uma soberana decisão pessoal (ideologia do género), a estratégia de remoção da doença prolongada e da morte, que necessariamente deixaria o «eu» soberano numa situação de dependência impossível de suportar neste vendaval de autonomia insano e insensato. É aqui que se insere em cheio também a temática da eutanásia, por assentar na minha autonomia, ampliando, por isso, o leque do exercício da minha liberdade. E é assim também que os velhinhos, que já perderam a autonomia e a quem já se roubou a soberania, vão sendo depositados no contentor das inutilidades e dos desperdícios, sabe-se lá por quem (!), mas seguramente por alguém que ainda mantém, ou a quem é mantida (para já!), a autonomia e o soberano exercício da soberania e da liberdade.
Uma coisa é «eu» ainda poder configurar-me a partir do Ego cogito, que me permite pensar por mim e, portanto, ser capaz de produzir a certeza em que me fundamento em perfeita, ou, pelo menos, relativa autonomia; outra coisa é, rompida essa lógica, entrar numa nova configuração, em que se passa da afirmação pretensamente segura do Ego cogito para uma pergunta até aqui adormecida porque desnecessária: «alguém pensa em mim?», «alguém me ama?» (Jean-Luc Marion), ainda que ainda sem resposta. Claro que esta nova configuração abre um sulco e um desfalque irreversível na velha autonomia e soberania em que «eu» me apoiava, tornando-me agora dependente de outrem, ignoto e anónimo, que facilmente me deixa do lado de fora da porta da autonomia perdida e da soberania roubada, do lado de fora de qualquer porta. Fico assim exposto à roda da incerteza radical de uma resposta problemática que nunca chega, talvez, a ser dada.
É bom que se vá compreendendo que este paradigma do Ego cogito não afeta apenas os que, pela idade e/ou pela doença, vão perdendo autonomia e soberania. Na verdade, afeta-nos a todos, ainda que pareça enganar-nos a todos, apenas enganar-nos, pois é verdade que, neste paradigma, todos vamos perdendo autonomia e soberania, do mesmo modo que vamos perdendo a razão ou a consciência. Eis diagnosticada a verdadeira doença deste mundo moderno, libertado e emancipado, assente na atividade dos meus atos, que vão, todavia, passando a atos sem atividade. Assim se assiste à decadência e deposição do Ego cogito, mortalmente ferido, de uma ferida já não cicatrizável, podendo organizar-se desde já a sua fúnebre despedida, como sugere o filósofo francês Jean-Luc Marion.
A doença é, porventura, o lugar que melhor expõe este desfalque, pois a doença faz ver, antes de mais, a componente passiva inscrita na corporeidade, porque mostra violentamente que o corpo precede a vontade e a intenção do sujeito, sendo dado antes que se possa querê-lo. Neste sentido, a doença revela, de maneira singular, a paradoxal estrutura da consciência, que não é possível, que não é pensável, sem a passividade que a precede, ficando fora de qualquer minha decisão consciente, mostrando, portanto, que a consciência não é o início, mas que é precedida por uma experiência que ela não põe, e de que, de facto, não dispõe, nem pôde dispor (Angelo Bertuletti).
Não obstante este desconcerto evidente, continuamos hoje a assistir ao desmesurado triunfo do conhecimento sobre a socialidade, da autonomia sobre a heteronomia, da identidade sobre a alteridade, com o normal corolário da desmedida «identificação», redução de tudo ao «eu» e ao idem, ao «mesmo», hipertrofia ou intumescência ou «nascida» do «eu», que produz a solidão, sete biliões de solidões. O conhecimento é, desde Aristóteles, a adequação entre o pensamento e o que ele pensa (adequatio rei et intellectus), havendo, portanto, no conhecimento a impossibilidade de o «eu» sair de si. O conhecimento é assimilação, inchaço, orgulho, gorgulho, intumescência ou «nascida» do «eu» omnicompreensivo, que tudo «prende» e aperta nos seus tentáculos cognoscitivos. No modo do conhecimento, não há exterioridade, pois também ela é ingerida e reduzida à imanência.
Salta à vista que esta maneira de ver e de viver, de ser, faz aparecer pela primeira vez, na história da humanidade, o ateísmo, e torna-se fonte de totalitarismos e violências inauditas. Em cheio a anotação crítica de Max Horkheimer (1895-1973) e Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969), da escola de Frankfurt, que escrevem a abrir a sua Dialética do Iluminismo (Dialektik der Aufklärung) (1947): «O iluminismo, no sentido mais amplo de pensamento em contínuo progresso, perseguiu desde sempre o objetivo de libertar os homens do medo e de os tornar donos e senhores. Mas a terra inteiramente iluminada resplandece, ao contrário, de triunfal desventura». É o triunfo da luz da nossa pequena razão científico-técnica, política e filosófica, com a qual pensamos que podemos dominar o mundo, emancipar o homem de todas as escravidões, instituir a autonomia como única chave de leitura do humano, dando a entender que toda e qualquer forma de heteronomia é pura alienação e fonte de escravidão. Esta ambição de uma compreensão solar do mundo, deste «século das luzes», ruiu clamorosamente no decurso do século XX, chamado «século breve» na expressão do historiador marxista inglês Eric Hobsbawm (1917-2012), que, para o efeito, o abre em 1914, com a primeira guerra mundial, e o fecha em 1989, com a queda do muro de Berlim. Na verdade, ao longo da história humana, nunca, como neste «século breve», iluminado e emancipado, se produziu tanta insensatez, alienação, estupidez e sofrimento. Nunca se abriram tantas valas comuns, e continuará a retinir nos nossos ouvidos e na nossa inteligência a incisiva questão de Jean-François Lyotard (1924-1998): «Que género de doutrina pode conceber Auschwitz como parte de um processo […] global de emancipação universal?».
2. A heteronomia, a socialidade, a responsabilidade pelo outro
Neste mundo hermeticamente cerrado sobre o «eu» e o seu círculo (des)encantado, é imperioso reabilitar a alteridade, a heteronomia, a exterioridade, a socialidade, empreendimento a que Emmanuel Levinas deu um contributo inestimável. A hipertrofia e intumescência do «eu» «criou», e deu azo a um abcesso da autonomia, e atirou-se com a heteronomia para o sótão da alienação e da escravidão. Mas é mesmo verdade que a heteronomia anula a autonomia? Não será, antes, a heteronomia que institui, fundamenta e alimenta a autonomia? Por exemplo, é verdade que o aluno que aprende com o professor a fonética e a gramática não verá, com certeza, comprometida a sua autonomia; pelo contrário, vê-la-á desenvolvida com a capacidade de falar e de comunicar; e este crescimento da autonomia não se desdobra das potencialidades do seu eu, mas deriva do e-vento e do milagre da exterioridade. Da mesma maneira, o corpo, que depende do alimento para crescer e se desenvolver, não se vê, no processo da alimentação, privado da sua autonomia; antes, encontrará nele o meio necessário para o crescimento da sua liberdade e das suas capacidades. O mesmo se diga do recurso aos medicamentos, em caso de doença. Também o filho, que é gerado pelo seu pai e pela sua mãe, não vê nessa geração uma privação da sua autonomia, mas antes a condição da sua existência. São apenas quatro exemplos que mostram como a ideia moderna de autonomia, sem nenhuma heteronomia, é claramente insustentável.
A heteronomia não só não é a negação da autonomia, como pode bem ser o seu suporte e fonte de alimentação. O modo da socialidade é uma relação completamente diferente da que se estabelece no conhecimento, sendo a socialidade comandada pelo rosto nu do outro que irrompe de improviso no meu mundo e me ordena, dando-me as suas ordens, de uma altura tal, que a palavra por ele proferida, ou já por mim obedecida ainda antes de ele a proferir, bem se pode chamar Palavra de Deus (Emmanuel Levinas). O rosto nu do outro não é a mediação, mas o modo e o lugar «não-lugar» da Palavra de Deus. O rosto é o não assimilável e o não tematizável, pois não se pode transformar em conteúdo, e abre em mim um sentido novo, anterior à minha Sinngebung, que é a minha capacidade de produzir sentido e intencionalidade, sendo, portanto, anterior a/ e independente de/ qualquer iniciativa provinda do meu poder ou do meu saber, e não é, portanto, abarcado, engolido ou ingerido pelos tentáculos do pensamento.
O homem que jaz em coma na valeta da estrada que descia de Jerusalém para Jericó, porque jaz em coma, não tem nenhum saber, nenhum poder, nenhum dizer. E, todavia, sai do seu rosto nu, da sua radical pobreza, um mandamento fortíssimo que comanda as entranhas do Samaritano e as minhas. Bem entendido, este homem que jaz na valeta, na máxima pobreza e aparente impotência, é que é o verdadeiro soberano, pois sem nada dizer nem poder, me ordenou que me debruçasse sobre ele, e eu fi-lo. Não fui eu que o escolhi ou que decidi fosse o que fosse; foi ele que se interpôs no meu caminho, e me ordenou que cuidasse dele.
Responsabilidade anterior à liberdade. No rosto nu do outro exprime-se e expõe-se um Sentido novo, preliminar à minha Sinngebung ou produção de sentido subjetivo dentro da esfera da minha liberdade e intencionalidade. Ultrapassagem de Descartes e Husserl por Levinas, isto é, do primado da subjetividade intencional da consciência ou do Ego cogito, que assume a iniciativa do sentido, para a alteridade do rosto do outro em que se inscreve um sentido preliminar e anterior à minha Sinngebung. Vê-se bem, neste paradigma, que o rosto do outro não é conteúdo, não entra na estrutura do conhecimento, que é sempre o procedimento pelo qual uma exterioridade se encontra no interior de uma consciência, que não cessa de identificar, sendo identificar o seu afazer, e identificar é reduzir tudo ao idem e ao unum, traço dominante de toda a filosofia ocidental e gérmen de toda a violência e totalitarismo.
Ao contrário, a socialidade põe-me em relação com o rosto ou viso nu do outro, ao mesmo tempo pobre e senhor, pobre porque nu, e senhor porque pobre e nu, rosto ou viso que não surge como conteúdo, mas como súplica e mandamento, súplica que é mandamento, que quebra e interrompe a minha espontaneidade e expansividade selvagem, decapitando-me e apeando-me e impedindo-me de o ingerir, isto é, de o assimilar e transformar em objeto do pensamento, e impõe-me a responsabilidade por ele, pelo outro, que é o verdadeiro sentido da proximidade, na aceção nova de me obrigar a responder ao outro e pelo outro, portanto, por aquilo que não fui eu que fiz, e não apenas na aceção clássica, filosófica, jurídica, social e cultural de «eu», como senhor mais ou menos civilizado e engravatado, que responde apenas pelo que sou «eu» que faço. Na verdade, se o «eu» responde apenas a si mesmo acerca daquilo que ele decide, não se pode dizer que estejamos perante verdadeira responsabilidade. Seria mais acertado chamar-lhe coerência, dado que o étimo de responsabilidade remete para «resposta», e esta pode instaurar-se somente onde haja verdadeira alteridade. Entrar nesta alteridade é o modo em que o «eu» é apeado do seu pedestal, acedendo assim à sua identidade paradoxal: paradoxal, porque se trata de identidade não identitária, a única que des-identifica e separa, institui a riqueza da multiplicidade que é dualidade e fraternidade, e abre para a responsabilidade ilimitada pelo outro.
Responsabilidade é uma das palavras-chave do percurso filosófico de Levinas, o que quer dizer que também o é da sua vida, das suas origens, do leite da sua língua materna. E aí está, então, a riqueza polissémica da ՚aharîût hebraica, em que ressoa em simultâneo o «irmão» (՚ah), o «outro» (՚aher) e o «último» (՚ahar), três termos que guiarão a sua vida e a sua reflexão: o irmão é, na verdade, sempre também o outro, e é também o último homem, aquele que nada possui a não ser a injunção «Tu não matarás» inscrita sobre o seu rosto nu; em última análise, o irmão é sempre Abel (Hebel), o nómada sem fixação no solo e cuja existência tem a inconsistência do fumo ou do sopro e a não-forma do vazio, do oco, como sugere a etimologia do seu nome, e que é importante registar, pois mostra que não pode ser possuído por ninguém – «ninguém é dono do vento, para reter o vento» (Qohelet 8,8) –, em claro contraponto com Caim cuja etimologia remete para o verbo qanna՚, que significa possuir. Sendo ainda o último, não fica em aberto nenhum «depois», nenhuma escapatória ou saída de emergência, nenhuma nova possibilidade que nos permitiria redimir ou resgatar o erro, corrigir perspetivas, recuperar o perdido. É, portanto, absolutamente decisivo o que eu faço agora. Sendo a vida então um contínuo estado de emergência, o bem que deve ser feito agora assume um carácter de extrema urgência, e é sabido que, para a Bíblia, o bem se identifica com a vida.
Esta responsabilidade pelo outro arrasta consigo a redefinição da proximidade, obriga a ler a proximidade de «outro modo que ser», pois deixa de ser, portanto, uma proximidade meramente espacial, que se traduziria na simples redução do espaço que separa os termos que se dizem próximos, mas difere também da simples afetividade, sempre por aí muito reclamada, entoada, emproada e propalada, para entrar pelo domínio novo e exigente de ter de responder ao outro e pelo outro, relação nova onde nasce a fraternidade. Esta transformação e conversão da proximidade em responsabilidade pelo outro deixa-nos no terreno da socialidade que, sendo responsabilidade pelo outro, pelo próximo, gera entre nós uma relação assimétrica, anárquica e traumática, dado que o rosto ou viso nu do outro se alevanta diante de mim de improviso, sem que eu o tenha chamado, e me manda amá-lo, antes de eu ter andado algum caminho, construído alguma casa, alinhado alguma ideia, adiantado algum ato livre ou alguma decisão mais ou menos meritória. O rosto nu é sempre o próximo, o primeiro chegado, que surge diante de mim sempre pela primeira vez (ainda que seja um velho conhecido, velho amigo, velho amor, de há muito implicado na trama das minhas relações), e me ordena antes de ser reconhecido, e me constitui seu servo, já atrasado e culpado do atraso. Aí está todo o novo saber da Bíblia, que é a prioridade do outro sobre mim. O modo do conhecimento é apenas e sempre solidão, pois todo o seu trabalho consiste na redução de tudo ao mesmo, intumescência, inchaço ou «nascida» do «eu». Ou, se se preferir, relação com a morte, porque, neste tipo de pensamento que tudo engloba, ingere, inclui, e logo incha e rebenta, se morre sempre sozinho, como mostrou Martin Heidegger nas severas análises do seu Sein und Zeit. O modo do conhecimento sou «eu» sozinho no meio de objetos, depois de reduzir também os outros e o próprio tempo a objetos (Génesis 2,18), como mostrou Abraham Joshua Heschel (1907-1972).
Sociedade anónima, desencantada, sem Deus e sem profetas (Max Weber), anestesiada, medicada, dependurada, não apenas vazia, mas esvaziada. Ninguém pode levantar um saco vazio. Pode-se apenas dependurá-lo. Como as harpas, já sem uso à míngua de alegria e de Deus, dependuradas nos salgueiros da Babilónia, como o futebolista, em fim de carreira, que dependura as botas, ou como as enxadas dependuradas à entrada de portas fechadas, por já não haver mãos que lhes peguem.
Se não se pode levantar um saco vazio, tão-pouco se pode levantar uma sociedade esvaziada. A falta que faz um rosto!
António Couto