A vila de Tabuaço (Douro) acolheu, no salão Nobre da Câmara Municipal, o Colóquio “Se acender a luz não morrerei sozinho” – receção de Daniel Faria a 20 anos da morte, nos dias 8 e 9 de junho de 2019, sob organização da Associação Casa Daniel, com a parceria da Cátedra de Sophia e com o apoio do Município de Tabuaço.
Foi um momento para refletir porque é que Daniel Faria, nas palavras de D. Carlos Azevedo, Presidente do Colégio de Fundadores da Casa Daniel “vivia a sua poesia como casa ancorado no Alto”. Daniel Faria renovou a poesia ao encontrar “palavras novas para coisas de sempre”, segundo o mesmo Presidente. Daniel Faria, no crer de D. Carlos Azevedo, soube fazer da poesia uma explicação apaixonante.
“Daniel: lugares mal situados” foi o mote da mesa-redonda que abriu o Colóquio, constituída por Dom Abade Bernardino Costa – abordando “Daniel, benedito de Singeverga –, Joaquim Santos – que explicou o significado d’O Livro do Joaquim –, e Nuno Higino Teixeira da Cunha – recordando Daniel Faria no Marco de Canaveses. Francisco Jorge Freitas, moderador da mesa redonda, partilharia uma pequena mas significante frase que, há 22 anos, Daniel Faria leria na igreja de São Pedro das Águias: “Ao nos terdes chamado para longe, viemos com a distância a recordar-nos o quanto nos estais próximo”. Daniel Faria era uma pessoa simples, discreta e atenta, como refere Dom Abade de Singeverga, deixando um desafio à comunidade intelectual e científica: que não façam de Daniel um lugar de exposição, uma exposição da qual o poeta faz parte. Daniel Faria era desprendido dos bens, excetuando as pedras que ia colecionando. Esse desprendimento fazia dele uma pessoa diferente. Mais do que poeta, era um “rapaz de paz” (Nuno Higino), um “rapaz raro”, nas palavras de Alexandra Lucas Coelho. Dizia-nos, Nuno Higino, ainda, que D. Fernanda, a mãe de Daniel, sentia falta do filho porque “Ele dava paz”.
Daniel Faria tinha nos amigos um abrigo, ou a falta dele. Os amigos são a vida. Na ausência deles revela-se o contrário. Partilhou Joaquim Santos sobre Daniel: “Para morrer bastaria um amigo ausente” e que o desespero atinge Daniel nos momentos de “ausência dos meus amigos”; ainda, “custa-me a liberdade dos meus amigos”. Daniel Faria sempre teve o outro como figura central: “Cada um é lugar para o outro”, um outro próximo, independentemente do lugar. O ‘tu’ em muitos dos poemas do Daniel é um ‘tu’ divino, transcendente. Mas o transcendente também é o outro que está ao lado de Daniel, porquanto figura do amor de Deus e que Daniel sempre amou. Daniel era um homem do silêncio.
As raízes bíblicas da poesia de Daniel Faria foram aprofundadas por José Carlos Carvalho. Nas palavras do Professor de Bíblia da Universidade Católica Portuguesa, Daniel estava atento aos silêncios dos textos bíblicos. Refere, ainda, que “Daniel era mais apocalíptico do que se possa pensar”. Pergunta o mesmo orador se os textos do Daniel são para ele ou, por outro lado, para o leitor-ouvinte. A poesia de Daniel Faria é um texto que fica. Fica para o mundo, sendo o homem parte do mundo. E para se “ouvir o mundo, é preciso distanciar-se da realidade”, entrando nessa realidade. Na opinião do orador, “Daniel Faria, tal como São Paulo, fala-nos do Paraíso”. “O lugar de Daniel são lugares teológicos”. E esses lugares apenas os encontramos em Daniel e nos textos bíblicos. O mistério transcende sempre as palavras. Nos seus textos é percetível a admiração pelo “criador, pela obra criada e pelas criaturas”. Daniel ajuda-nos a fazer Lectio Divina dos textos da Escritura.
A encerrar as comunicações do dia 8, depois de uma visita à igreja de São Pedro das Águias, em Granjinha, e a uma visita à Casa Daniel, Luís Adriano Carlos afirmaria a maioridade e genialidade das palavras de Daniel Faria, referindo que os textos do poeta possuem uma arquitetura muito própria e original. Sem dúvidas, reafirmou ser Daniel Faria o maior poeta da sua geração. É uma poética da imagem, mas não deve ser reduzido a este poder. O génio que acompanha a atividade criadora de Daniel Faria ingressa no trajeto da definição de “génio” que Luís Adriano percorreu desde a Renascença até ao século XX, sintetizando. Daniel Faria privilegia a “elevação do tom e a parte ascendente da frase, retirando mil e um efeitos de surpresa no modo como foi variando o desenvolvimento da linha melódica”. A genialidade do poeta em evocação foi desvelada. O seu “discurso é envolvido numa anástase generalizada que o eleva acima de si mesmo, e é essa dobra que nos fascina. O génio esconde-se nesse detalhe”.
Terminados os trabalhos do colóquio, seguiu-se eucaristia na igreja matriz de Tabuaço, presidida por D. António Couto, Bispo de Lamego que aludiu à força e presença do Espírito Santo, “rajada” à qual devemos estar despertos e ser acolhedores.
A terminar o dia, houve lugar a um concerto com peças inéditas e compostas para o evento, por Alfredo Teixeira. A interpretação esteve a cargo de Entre Madeiras Trio, com Miriam Tallette Cardoso (flauta), Filipe Pereira Branco (Oboé) e João Andrade Nunes (Saxofone), e Ensemble São Tomás de Aquino, com Margarida Simões, Mara Marques, Mariana Monteiro, Mariana Cardoso, João Custódio, João Pedro Afonso, Pedro Morgado e André Ferreira. O Programa estava dividido em três momentos: i) Apocalipse breve, segundo Daniel Faria (Políptico para um duplo trio; ii) Diferencias (a partir do canto “O Virgo Splendes”, in Libre Vermell de Monserrat); e iii) Lectiones (Leituras da poesia portuguesa contemporânea).
No início da manhã do dia 9, Martinho Tomé Soares, da Universidade de Coimbra, deferiu, sobre a plateia atenta, “pedras incendiadas”. Este é um “semantema lítico recorrente” em Daniel, principalmente na obra Explicação das Árvores e de Outros Animais. A pedra, em Daniel Faria, é uma “pedra em movimento”. É uma “pedra sem raiz”, em “alusão à pedra do sepulcro de Cristo, cuja remoção deixa entrar a luz do sol matinal e ressurgir Aquele que estava morto e agora revive na manhã primaveril”. Para compreender o simbolismo poético da litofilia de Daniel Faria há que entender profundamente o “valor sacro-religioso das pedras”.
José Pedro Angélico contribuiu para uma leitura teologal da poesia de Daniel Faria. Para aquele, a poesia de Daniel é “como uma tensão expectante de um primeiro beijo, um lugar desassossegado, uma espécie de curto-circuito na corrente viva das palavras”. Referindo-se à vida teologal, ela é um “lugar de vida por cumprir, do aberto, do inesperado, do hálito tenso antes do beijo”. Refere, ainda, que talvez seja precipitado dizer que a poesia de Daniel Faria é mística ou mesmo religiosa. A admitir algum fundamento místico nos escritos de Daniel, teriam que ser alinhados a “uma linguagem que pode ser teologal, mas dificilmente teológica, se por Teologia entendermos a ciência da fé. A poesia do ‘poeta maior’ será, então, um “lugar de antecipação frágil, talvez a única possibilidade de realização teologal”. Numa tentativa de definição de vida teologal, José Angélico não esconde a vontade de se apropriar dos versos de Daniel, referindo que se assemelharia “a um bater à porta como se estivesse sempre do lado de dentro, um lugar onde encostar o coração, mais interior do que o sangue no coração a receber”.
A terminar o colóquio, José Rui Teixeira refletiu sobre o corpo e a morte nas obras Explicação das Árvores e de outros Animais (1998), Homens que são como lugares mal situados (1998) e Dos líquidos (2000), editados pela Fundação Manuel Leão.
Três livros que correspondem a um profundo amadurecimento, nas dimensões humana, cultural, espiritual e poética. O tempo “parece não ter tempo, apenas temporalidade, como se habitasse um presente orgânico que convoca o passado”.
Duarte Ribeiro, in Voz de Lamego, ano 89/27, n.º 4514, 11 de junho de 2019