TODOS REUNIDOS À MESA DO SENHOR
«Sacrifícios e oblações Tu não quiseste, mas formaste-me um corpo» (Hebreus 10,5)
1. Hoje é o Dia da Eucaristia. Da reunião dos irmãos, santos, amados e chamados por Deus, à volta de Jesus, pão da vida (João 6). Vem de longe esta avenida florida de alegria, de trigo maduro e de vides ajoelhadas com uvas vermelhas, suculentas, deliciosas. «Sobre este monte (Sião), o Senhor dos Exércitos preparará para todos os povos um banquete de carnes gordas e vinhos finos», anuncia Isaías 25,6. Também a Sabedoria, que vem de Deus, se dá ao trabalho, e manda anunciar nos pontos altos da cidade: «Vinde, comei do meu pão, bebei do vinho que preparei» (Provérbios 9,5). Banquete que se entrevê já na chegada de Melquisedeque, rei e sacerdote de Shalem, futura Jerusalém, que traz a Abraão pão e vinho e paz e bênção.
2. Assim abre a liturgia deste Dia com o belo texto do Livro do Génesis 14,18-20, que rasga uma avenida imensa que passa pelo Salmo 110,4, onde Deus consagra o rei messiânico como «sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque», que ecoa depois na Carta aos Hebreus, que canta Jesus Cristo como sendo esse «sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque» (5,6.10; 6,20; 7,11.15.17), e não segundo a ordem de Aarão e de Levi, em que os sacerdotes se iam sucedendo. Toma lugar também na oração Eucarística do Cânone Romano, em que a Igreja reza: «Olhai com benevolência e agrado para esta oferenda, e dignai-vos aceitá-la, como aceitastes os dons do justo Abel, vosso servo, o sacrifício de Abraão, nosso pai na fé, e a oblação pura e santa do sumo-sacerdote Melquisedeque». Mas esta avenida bela e florida passa também pelo Cenáculo, e transparece no belo hino intitulado Lauda Sion Salvatorem [= «Louva Sião o Salvador»], em que cantamos assim: «Eis aqui o pão dos anjos,/ feito pão dos peregrinos,/ que não deve profanar-se.// Em figuras proclamado,/ como Isaac hoje imolado,/ é Cordeiro e maná puro.// Ó Jesus, ó Bom Pastor,/ verdadeiro pão da vida,/ defendei-nos e salvai-nos.// Vós que tudo conheceis,/ consenti que à vossa mesa/ nos sentemos para sempre».
3. O Evangelho Hoje proclamado e escutado (Lucas 9,11b-17) expõe diante de nós um dia da vida de Jesus. Reparemos que se situa imediatamente a seguir ao regresso dos Doze da sua primeira missão (Lucas 9,1-10a). Partem de junto de Jesus, por Ele enviados, e a Jesus regressam. Entenda-se: Jesus é sempre o centro, o único verdadeiro ponto de partida e de chegada da nossa vida. Prestemos agora atenção às notas fundamentais do diário deste dia de Jesus: «Tendo acolhido as multidões, falava-lhes do Reino de Deus e sarava os que tinham necessidade de cura» (Lucas 9,11b). Por tópicos: Jesus acolhia toda a gente (1), explicava a todos o Reino de Deus (2), curava os necessitados (3). Estes três pontos são todo o afazer de Jesus, todo o entretenimento de Jesus, que envolve as pessoas todas no manto da ternura de Deus. É de tal modo intenso e belo este afazer de Jesus, que nem Jesus nem as pessoas que com Ele estavam se apercebem de que o dia passou e já começa a cair a noite. Entenda-se: o amor, a beleza, o encantamento têm outra medida, e não se guiam pela rota do sol ou pelo movimento dos ponteiros do relógio.
4. Pelos ponteiros do relógio guiam-se os Doze, os discípulos de Jesus que estão ali à espera, chateados e preocupados, talvez até ruídos pela fome e pelo cansaço, pois começa a cair a noite, e não veem maneira de Jesus despachar aquela gente. Intervêm, portanto, aparentemente cheios de razão, e ditam a Jesus algumas indicações que julgam cheias de bom senso: «Manda essa gente embora, para que possam encontrar alojamento e comida nas aldeias e campos próximos» (Lucas 9,12). A réplica de Jesus é estonteante: «Dai-lhes vós de comer!» (Lucas 9,13). Atordoados, respondem às apalpadelas. Primeiro esboço: «Só temos cinco pães e dois peixes», que é como quem diz, o que temos mal chega para nós… Segundo esboço: «A menos que vamos nós comprar comida para eles…» (Lucas 9,14).
5. As indicações, aparentemente sensatas, dos Doze nem sequer chegam a ser equacionadas por Jesus, o que significa que as considera completamente desajustadas. Jesus dá e faz ordens novas e surpreendentes, como faz sempre Deus (cf. Isaías 43,19): «Fazei-os reclinar à mesa (kataklínô) para comer» (Lucas 9,14), diz Jesus. Podemos imaginar o espanto que se terá apoderado daqueles Doze, que devem ter pensado mais ou menos isto: «mandá-los reclinar à mesa, neste lugar ermo, para comer! Mas para comer o quê?!».
6. Ação Eucarística de Jesus: «Tendo recebido os cinco pães e os dois peixes, levantou os olhos para o céu (gesto de oração), pronunciou a bênção, partiu-os e dava aos discípulos para servirem à multidão» (Lucas 9,16). E diz-nos o narrador que todos comeram e foram saciados por Deus (verbo na passiva) (Lucas 9,17). É forçoso descobrir a interpretação que o narrador oferece deste extraordinário banquete servido «numa zona deserta» da Galileia. Salta à vista que os gestos que Jesus faz naquele entardecer são um claro decalque daqueles que fará um ou dois anos mais tarde no interior da sala do Cenáculo na última tarde da sua vida terrena. Basta apenas acostar aqui o relato Eucarístico do Cenáculo: «Jesus recebeu o pão, deu graças, partiu-o e deu-o a eles» (Lucas 22,19a). O novo nesta Ceia do Cenáculo é o dizer de Jesus sobre o pão partido e a eles dado: «Isto é o meu corpo dado por vós. Fazei isto em memória de mim» (Lucas 22,19b). E sobre o vinho: «Este é o cálice da nova aliança no meu sangue, por vós derramado» (Lucas 22,20).
7. Prestemos atenção e reparemos bem que, aos olhos atónitos dos discípulos e dos nossos, Jesus não fez uma operação de multiplicação dos pães, mas de partilha dos pães! Só Jesus sabe de uma divisão fazer uma multiplicação! O milagre de Jesus, aquilo que suscita surpresa e maravilha, não consiste em aumentar a quantidade do pão e do peixe (que permanece a mesma), mas em abrir os olhos aos seus discípulos e a nós que, como cegos, só conhecemos e pensamos na lógica do comércio e do relógio, e não chegamos a saborear a lógica da gratuidade, que é a do nosso Pai celeste que faz nascer o sol para os bons e para os maus, veste os lírios do campo, alimenta os passarinhos. Entrar nesta lógica é acreditar na força do dom, e ir por este mundo consumista, partindo o pão e partilhando-o, com a clara consciência de que onde isto acontecer, não só se instaura o necessário para todos («todos comeram e foram saciados»), como se instaura também o «excesso», a superabundância da graça («os discípulos encheram doze cestos») (Lucas 9,17).
8. Jesus leva até ao fim a lógica nova do Evangelho, que é a medida sem medida do amor de Deus, que muda radicalmente a nossa maneira de pensar e de viver. Este é o lado subversivo do Evangelho. Não, Jesus não se contenta, nem quando nós nos propomos comprar pão para alimentar os outros. Para Jesus não é compreensível que uns tenham mais, outros menos e outros nada, e que esta situação se possa amenizar pontualmente, com oportunas medidas sociopolíticas. Dar tudo é a medida de Deus e a lógica do Evangelho. Por isso, Jesus diz: «Isto é o meu corpo dado por vós. Fazei isto em memória de mim» (Lucas 22,19b); «Este é o cálice da nova aliança no meu sangue, por vós derramado» (Lucas 22,20). Vida partida, repartida e dada por amor. Eis o inteiro programa de Jesus. Eis tudo o que devemos fazer, imitando-o.
9. E é isto que devemos aprender a fazer nesta Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, hoje particularmente unidos e reunidos à volta do Senhor Jesus Cristo. Sim, Hoje é Dia de a Igreja estar unida e reunida à volta do seu único Senhor, Jesus Cristo, que por nós parte e reparte a sua vida. Daqui a pouco, o Senhor da nossa vida presidirá e abençoará com a sua Presença, caminhando connosco, no meio de nós, as ruas da nossa cidade. O pálio (pallium) de Deus atravessará a nossa cidade. O pálio de Deus é o manto (pallium) de Deus, os braços carinhosos com que nos abraça e nos envolve, e nos pede para fazermos outro tanto, enchendo de graça e de esperança todos os nossos irmãos, sobretudo os mais sofridos e marginalizados. Verdadeiramente, num mundo em crise e às escuras como este em que vamos, parece que voltamos a viver, como dizia São Paulo aos Efésios, «sem esperança e sem Deus no mundo» (Efésios 2,12). Entenda-se: sem esperança, porque sem Deus no mundo, connosco, no meio de nós.
10. Jesus Cristo é Deus presente no nosso mundo e no nosso meio todos os dias. E o pálio é o manto, o abraço, com que nos acarinha e envolve. De pálio (pallium) vêm os cuidados paliativos, que não são apenas os cuidados médicos que são prestados aos nossos doentes terminais; são sobretudo a expressão de um amor maior, de um manto maior, que nos envolve, nos irmana e nos salva em todas as situações.
Passa outra vez, Senhor, e envolve-nos no teu manto de paz e de amor.
Lamego, 20 de junho de 2019,
Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Jesus
+ António, vosso bispo e irmão