Um Pai que nunca nos deixará órfãos – Uma narrativa de vocação

A linguagem, recurso a que recorremos quando queremos comunicar, constitui-se de diferentes modalidades de acordo com o estilo que é utilizado. Assim, há a linguagem verbal que se manifesta em palavras e a linguagem não verbal que emprega diferentes sinais e expressões. Todavia, para que a linguagem possa ser minimamente compreendida é necessário que aqueles que a utilizam possuam o mesmo código interpretativo para que a mensagem que é apresentada na linguagem seja recebida e compreendida. Ainda assim, o uso de um mesmo código entre emissor e recetor não é garantia de que o conteúdo da linguagem seja transmitido e compreendido. É um facto de que a linguagem (na palavra, sinal ou expressão) não diz tudo porque é incapaz de abarcar a realidade que se procura exprimir ou partilhar.

Com esta referência não quero apenas indicar uma reflexão linguística, mas predispor a nossa mente para uma palavra que o Verbo de Deus nos revelou e que transformou o possível pensamento que podemos apresentar em relação a Deus.
Jesus, na sua vida terrena, teve como missão partilhar com a humanidade uma mensagem singular que se manifestou na linguagem de um Deus trino que se encontra próximo da humanidade. Esta linguagem não nos revela uma composição de um ser distante cuja omnipotência constitui uma barreira ao ser humano, na sua realização ou uma projeção de um ser paternal que na sua essência divina fiscaliza a nossa vida. Jesus (o Filho) oferece, com a Sua vida, um caminho para o Pai, tendo como guia o Espírito Santo. Esta oferta manifesta já um dos maiores dons que podemos encontrar na história humana, pois o que Jesus faz não é dar-nos uma definição de Deus, numa descrição ontológica do ser divino, mas propõe-nos uma experiência de filiação com o Pai, cujo código é precisamente a relação de Jesus com o Pai.

O Pai, revelado por Jesus, afasta-se de uma compreensão paternal, que só o é por domínio ou como indicação do seu poder. O Pai, revelado por Jesus, também não é um paizinho que nos dá coisas, guiado pelo nosso capricho efémero em cada momento de prece. O Pai, revelado por Jesus, torna-nos pessoas porque nos abre a uma dimensão de relação, de alteridade, cujo espectro não termina biologicamente, mas abre-se à eternidade, cujo futuro não se pode dominar ou controlar, submeter ou viciar, pois está orientado pela imprevista esperança.

Contudo, esta dimensão de relação diz-nos algo, partindo da Lei da Incarnação, segundo as palavras de Rovira Belloso: o Pai manifesta a sua paternidade como geração absoluta e eterna de Amor, paternidade que não se encerra na Trindade, mas que é doada a todo o género humano.

O Filho, enviado ao mundo para Se fazer Homem, tornou-nos participantes de uma herança que se manifesta na possibilidade eterna de nunca sentirmos o abandono de Deus, ou noutras palavras, de um Pai que nunca nos deixará órfãos. Todavia, a participação nesta paternidade depende da resposta individual de cada um, pois este Pai chama cada um de nós e apenas cada um poderá responder, visto que ninguém pode dar a sua aceitação senão por si mesmo.

É nesta resposta que se edifica a filiação de cada um daquele que se sente chamado, vocacionado para sair de si, da sua solidão, da sua orfandade e viver como verdadeiro filho, iluminado pela esperança e não pela  ilusão que o distrai e não o deixa contemplar Aquele que dá a Vida.

Que o isolamento que vivemos nos ajude a fazer ver o profundo desejo de transcendência que existe no nosso coração e nos ajude a viver como conscientes vocacionados para esta experiência de filiação.



Pe. Miguel Peixoto, in Voz de Lamego, ano 90/23, n.º 4558, 5 de maio de 2020

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