Texto de opinião da Diocese de Lamego, na Ecclesia, para o mês de maio.
No tempo, a liberdade que nele se experimenta e que dele se extrai é prenúncio de uma liberdade sem tempo, onde tudo será apenas presente, sem contos nem descontos, sem venturas nem desventuras, sem tempos nem contratempos, porque tudo será somente Eternidade.
O hoje da nossa existência, em quase todas as sociedades e culturas, carateriza-se por ser o tempo da liberdade. Assistimos, só no último século, à queda de tantos regimes ditatoriais, à descolonização de tantas nações, à implantação de tantas democracias, ao surgimento de tantas economias liberais, ao proliferar de tantas ideologias políticas que afincadamente defendem uma exacerbada luta por igualdades que garantam a liberdade de tudo e de todos.
No entanto, no decurso da História vamos sendo assaltados por vicissitudes que nos mostram cabalmente que, mais importante e imprescindível que o tempo da liberdade, é a liberdade do tempo. Isto é, aquela que se usa não porque achamos que podemos fazer tudo o que queremos quando nos apetece, mas da qual nos servimos para fazer o que devemos, cientes de que nem tudo e nem sempre podemos, ainda que muito o desejemos.
Se quisermos uma prova evidente disto mesmo basta olharmos para o que têm sido para nós as últimas semanas, ou os últimos meses. Excetuam-se aqui aqueles que por força da sua profissão tiveram que continuar a sua atividade, muitos ainda com maior exigência laboral. Para os outros, uma maioria significativa que tivemos de “ficar em casa”, vivíamos o tempo da liberdade em que o relógio se apresentava como um adversário violento, porque fazia passar velozmente o tempo, e este nunca chegava para tanto que tínhamos para e por fazer. Hoje, o relógio continua a ser um inimigo. Já não pelas mesmas razões. Mas, pelo contrário, porque não acelera o curso dos minutos e das horas, e nunca mais este tempo passa.
Antes programávamos o tempo como donos de uma liberdade que controlávamos e nos permitia fazer planos exatos e calculados ao segundo. Agora, a liberdade do tempo que passa vagarosamente é que nos programa e exige de nós a paciência e a capacidade de inventar e reinventar, uma e outra coisa que não apontamos na agenda, mas que vamos escrupulosamente realizando como se fosse a mais urgente e importante de todas as tarefas.
Antes arriscávamos sem medos e sem reservas, porque era o tempo da liberdade que nos dava largas para contactos e festas, para beijos e abraços, para risos e emoções, tantas vezes sem os valorizarmos. Agora, cerca-nos o medo e a incerteza, envolve-nos o desassossego e a dúvida, que nos confinam aos movimentos essenciais em espaços reduzidos, mas que por sua vez nos trazem a liberdade do tempo que agora é realmente nosso, porque é essencial para nós e para aqueles que são nossos, e até para Aquele a quem nem tempo tínhamos para dar.
Antes era o tempo da liberdade em que tínhamos de fazer tudo para todos e com todos, a nível profissional, social, recreativo, desportivo, etc., porque em sociedade a liberdade do outro depende também do bom exercício da minha liberdade e do não adiamento das minhas responsabilidades. Agora, a liberdade do tempo peculiar que vivemos obriga-nos a olhar para dentro, a fazer o que é só nosso e que há tanto tempo andávamos a adiar, porque a minha e a liberdade do outro dependem (temporariamente) do nosso isolamento.
Antes abominávamos ideologias totalitárias e evitávamos homens despóticos que ameaçavam a possibilidade de viver o tempo da liberdade, que em tempos nos custou a ganhar. Agora percebemos que afinal nenhum homem, governo ou nação é capaz de nos garantir a melhor de todas as liberdades. Porque afinal, quando estes não são capazes de controlar no tempo um qualquer contratempo, o que primeiro nos pedem é que nos isolemos, nos fechemos e nos confinemos, para que a liberdade do tempo volte antes que o nosso tempo acabe.
Pe. Diamantino Alvaíde, in Voz de Lamego, ano 90/23, n.º 4558, 5 de maio de 2020