1. Noite Santa. Noite com excesso de Luz, que encandeia os olhos dos pastores. Os olhos e os ouvidos, pois veem o nunca antes visto e ouvem o inaudito, vindo de Deus, através do seu anjo: «Nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador, que é o Cristo Senhor. Isto vos servirá de Sinal: encontrareis um recém-nascido envolto em faixas deitado numa manjedoura», como acabámos de ouvir no Evangelho de Lucas (Lucas 2,11-12), e que Isaías dizia assim: «Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado. Tem o poder sobre os seus ombros» (Isaías 9,5).
2. Um Salvador acabado de nascer. Um menino que tem o poder sobre os ombros. Contemplai bem, amados irmãos e irmãs, o Sinal da salvação e do poder dado por Deus aos pastores de Belém, e a nós também: nada mais, nada menos do que um menino acabado de nascer envolto em faixas, igual, portanto, a todos os recém-nascidos, que necessitam de todos os cuidados! Necessitam de todos os cuidados, mas põem tanta gente em movimento! Mais espantoso ainda pode ser o facto de este bebé, em quem se pode ver a salvação com poder, ter nascido num estábulo, aparecendo, por isso, deitado numa manjedoura, e não num berço! E espantoso continua a ser que o Sinal da salvação e do poder dado por Deus seja um bebé, pobre e necessitado, não apenas de alguma coisa, mas de tudo! Portanto, à primeira vista, aos pastores não é dado ver nada de extraordinário que os possa convencer de que está ali um Salvador com poder. Nem aos pastores nem a nós, que não temos para ver mais do que os pastores, quando ousamos contemplar demoradamente o cenário do Presépio.
3. O Sinal de Deus não passa, como vemos, por uma cena grandiosa de poder, mas pela máxima fragilidade e pobreza. O Sinal de Deus é um Menino, acabado de nascer, de tudo necessitado! O Sinal de Deus é que Ele se faz pequeno no meio de nós. Nunca ninguém viu um Deus assim pequenino! Viu-o Maria, viu-o José, viram-no os pastores, e podemos vê-lo nós também, para assim o podermos compreender, acolher e amar. E não nos esqueçamos de que este Sinal dado aos pastores e a nós também continua aí bem diante de nós, não apenas no Presépio, mas nas encruzilhadas da vida, pois, quando este Menino crescer e falar, ouvi-lo-emos dizer, para espanto nosso: «Todas as vezes que [não] fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes [deixastes de fazer]» (Mateus 25,40.45).
4. Os antigos Padres da Igreja, de tradição e língua grega, frequentavam a tradução grega do Antigo Testamento, e citavam amiúde um dizer do profeta Isaías em que se lia que «Deus abreviou a sua Palavra» (Isaías 10,23). E comentavam e glosavam mais ou menos assim, com os olhos postos no nascimento de Jesus: a Palavra de Deus é o seu próprio Filho, Palavra eterna, que se fez pequena, tão pequena que cabe numa manjedoura! A Palavra fez-se criança, para poder ser compreendida, acolhida e amada! Escreveu o insigne mestre das escolas de Alexandria e de Cesareia Marítima, Orígenes (185-254): «Suponhamos que se fez uma imagem de tal modo grande que, dada a sua imensidão, dentro dela conteria o mundo inteiro, e que, devido à sua imensidão, não podia ser vista por ninguém; e que se fez também uma segunda imagem, em tudo semelhante à primeira, pela configuração dos membros e pelos traços do seu rosto, pela forma e pela matéria, sem, todavia, ser tão grande: aqueles que não podiam examinar e contemplar a primeira devido à sua imensidão, podiam, pelo menos, ao ver a pequena, acreditar que viam a grande, dado que as duas eram absolutamente semelhantes quer pelo traçado dos membros quer do rosto, quer pela forma e pela matéria. Do mesmo modo, o Filho, despojando-se da sua igualdade com o Pai para nos mostrar o caminho do conhecimento (cf. Filipenses 2,6-11), torna-se a imagem e a expressão da sua substância (cf. Colossenses 1,15); assim, nós, que não podemos ver a Glória da Luz pura que se encontra na grandeza da sua divindade, pelo facto de ele se tornar para nós o reflexo, recebemos o meio de contemplar a Luz divina ao contemplar o seu reflexo (cf. Hebreus 1,3). Esta comparação das duas imagens, aplicada a objetos materiais, deve ter o sentido seguinte: o Filho de Deus, entrado na forma minúscula de um corpo humano, indicava em si mesmo, mediante as suas obras e o seu poder, a grandeza infinita e invisível de Deus Pai nele presente» (Perì Archôn, I, 2, 8). Na expressão bela de Orígenes, aí está diante de nós o Filho de Deus, um Deus pequenino, mas em tudo igual ao Pai. Não podendo ver diretamente a Glória e a Luz de Deus Pai, é-nos dada a graça de o poder ver através do seu reflexo.
5. Não podemos, portanto, ver diretamente o Pai, dada a imensidão da sua Luz e da sua Glória. Mas podemos vê-lo através do Filho, Palavra eterna, que se fez pequena, mas em tudo igual ao Pai (cf. João 14,9; 10,30.38). Deus abreviou então a sua Palavra, que é o seu próprio Filho, Jesus Cristo, Palavra eterna, que se fez pequena, para caber numa manjedoura, que se fez criança, para caber no colo de uma mãe, nos braços de um pai, para poder ser por todos acolhida e compreendida.
6. É assim também, amados irmãos e irmãs, que os Padres antigos usam transpor o imaginário da manjedoura para o Altar, mostrando no Altar a imagem da manjedoura. E aí está outra vez o Filho, agora Pão pequenino partido aos bocadinhos, e a nós dado em alimento por amor. Dom e Amor. Dom de Amor. Dom que é Amor. Na verdade, o Amor é também a Palavra de Deus abreviada, súmula e recapitulação da inteira Escritura Santa, como explica Jesus ao fariseu que quer saber qual é o maior mandamento da Lei. Jesus responde: «Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua inteligência. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos depende toda a Lei e os Profetas» (Mateus 22,37-40). Portanto, a inteira Escritura Santa, 419.687 palavras na Bíblia Hebraica, cerca de 800.000 na Bíblia Católica, pode abreviar-se, condensar-se e resumir-se na palavra Amor, amor a Deus e ao próximo, vivido como Jesus o viveu e nos mostrou através da sua Vida dada em alimento e alento. É este Amor que cabe no Altar ou na Manjedoura que é o Sinal Hoje dado a toda a humanidade.
7. Chegados aqui, é claro que uma pergunta pode saltar fora com toda a naturalidade: como podemos amar a Deus com toda a nossa inteligência, se não conseguimos vê-lo e encontrá-lo? Como podemos amar a Deus com todo o nosso coração e com toda a nossa alma, se este pobre coração consegue apenas entrevê-lo só de longe e de forma difusa, como num espelho (cf. 1 Coríntios 13,12), porque vivemos num mundo em que se atravessam diante dos nossos olhos tantas nuvens de frieza, indiferença e desamor, que toldam o seu rosto diante de nós?
8. É nesta situação nebulosa em que vivemos que «o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza […] com gemidos sem palavras (stenagmoì alalêtoí)» (Romanos 8,26), entenda-se: lalação, redução das palavras ao seu sopro, ao seu espírito, e ao Espírito que as inspira. Assim se coloca Deus ao nosso nível. Já não está longe de nós. Já não é um desconhecido, pois sentimos o seu sopro, o seu alento. Não está fora do alcance do nosso coração. Fez-se menino por nós e, com isto, dissolveu toda a ambiguidade. Tanto se aproximou de nós que se fez mesmo o nosso próximo, restabelecendo também deste modo a imagem do homem que, com frequência, se nos revela tão pouco amável. Compreendemos então que, por amor de nós, Deus se faz dom, doando-se a si mesmo. Perde tempo connosco. Debruça-se sobre nós. É nesse sentido que o Natal se assumiu como a festa dos dons, imitação de Deus que a si mesmo se doou por nós.
Que o céu se abra,
E que o orvalho desça
Sobre esta terra dura e seca,
Com as mãos em prece,
Pois vê-se que carece
De paz
E de ternura.
Que o Teu orvalho desça,
Mas desce Tu também,
Menino de Belém,
Por essa escada
Rendilhada
De água pura.
E não Te esqueças
De que está na altura
De vires nascer em Belém
E aqui também.
Lamego, Noite de Natal, 24-25 de dezembro de 2020
+ António, vosso bispo e irmão