SANTA MARIA, MÃE DE DEUS, RAINHA DA PAZ

1. O calendário litúrgico assinala Hoje o oitavo dia do Natal do Senhor. E a Lei de Deus mandava que nesse oitavo dia se celebrasse a festa da circuncisão, que incorporava o recém-nascido no povo da Aliança, acompanhada da festa da dádiva do Nome, neste caso Jesus, como o anjo tinha predito aquando da Anunciação. O calendário civil assinala Hoje o primeiro Dia do Ano de 2023, tradicionalmente designado como «Dia de Ano Bom», pois desejamos que o ano inteiro seja «bom», isto é, visto e guiado sob o olhar bom de Deus [«E Deus viu que era bom!»]. Neste Dia celebramos sempre a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a que anda associado também, desde 1968, o Dia Mundial da Paz, que vai já na sua 56.ª edição.

2. A figura que enche este Dia, e que motiva a nossa Alegria, é, portanto, a figura de Maria, na sua fisionomia mais alta, a de Mãe de Deus, como foi solenemente proclamada no Concílio de Éfeso, no ano 431, mas já assim luminosamente desenhada nas páginas do Novo Testamento, por exemplo, nos lábios de Isabel, quando responde à saudação de Maria com aquele grito grande: «De onde me é dado que venha ter comigo a “Mãe do meu Senhor?”» (Lucas 1,43), que ainda hoje ecoa nos nossos lábios no início de cada «Santa Maria, Mãe de Deus…».

3. É assim que a encontramos no Lecionário de hoje. Desde logo naquela menção sóbria, e ousamos mesmo dizer pobre [na riqueza espiritual que o termo contém], com que S. Paulo se refere à Mãe de Jesus, na leitura que há pouco tivemos a graça de ouvir: «Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei» (Gálatas 4,4). «Nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei». Ao todo, seis palavras no sóbrio texto grego [oito no português], e, ainda assim, duas repetidas: «Nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei». Nascido de uma mulher, isto é, como todos nós, nosso irmão em humanidade; nascido sujeito à Lei, isto é, membro do povo hebreu, a quem a Lei de Deus tinha sido dada. Nesta linha breve e densa, condensada, e, ainda assim, com o excesso daquela repetição só aparentemente desnecessária, aparece compendiado o mistério da Incarnação, ao mesmo tempo que se sente já pulsar o coração da Mariologia: Maria não é grande em si mesma; é, na verdade, uma «mulher», verdadeiramente nossa irmã na sua condição de humana criatura. Não é grande em si mesma, mas é grande por ser a Mãe do Filho de Deus, e é aqui que ela nos ultrapassa, imaculada por graça, bem-aventurada e bem-aventurança, nossa mãe na fé e na esperança. Maria não é grande em si mesma; vem-lhe de Deus essa grandeza.

4. O Evangelho deste Dia de Maria (Lucas 2,16-21) abre com a «corrida», à pressa, dos pastores dos campos de Belém até à manjedoura (Lucas 2,16), imitação da «corrida», à pressa, de Maria, desde Nazaré até Ayin Karem, para «visitar» Isabel (Lucas 1,39), imitação ainda da «corrida» dos 72 discípulos enviados em missão sem paragem nos apeadeiros (Lucas 10,4) e da «corrida» de Pedro (Lucas 24,2), dos dois discípulos de Emaús (Lucas 24,33), da Páscoa do Egito comida à pressa (Êxodo 12,11), do mensageiro de Isaías que corre sobre os montes (52,7), das mulheres e dos homens da Páscoa que devem ir depressa levar a notícia (Mateus 28,7; João 20,2.4). Enfim, da imensa correria de todos os discípulos a partir da Páscoa de Jesus. É a alegria de uma Notícia Feliz, a alegria do Evangelho, que faz correr tanta gente e que faz correr tanto!

5. O Evangelho deste Dia de Maria guarda também uma preciosidade, quando Lucas nos diz que «todos os que tinham escutado as coisas faladas pelos pastores ficaram maravilhados, mas Maria guardava (synetêrei) todas estas Palavras (tà rhêmata), compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,18-19). Em contraponto com o espanto de todos os que ouviram as palavras dos pastores, Lucas pinta um quadro mariano de extraordinária beleza: «Maria, ao contrário, guardava todas estas Palavras, compondo-as no seu coração». Há o espanto e a maravilha que se exprimem no louvor e no canto, e há o espanto e a maravilha que se exprimem no silêncio e na escuta qualificada. Maria, a Senhora deste Dia, aparece a guardar com ternura todas estas Palavras, todos estes acontecimentos que falam e não esquecem. O verbo guardar implica atenção cheia de ternura, como quem leva nas suas mãos uma coisa preciosa. Este guardar atencioso e carinhoso não é um ato de um momento, mas a atitude de uma vida, uma vez que o verbo grego está no imperfeito, que implica duração. Como quando o povo de Deus reza confiante: «Guardai-nos e defendei-nos como coisa própria vossa».

6. Esta solicitude maternal de Maria, habitada por esta imensa melodia que nos vem de Deus, levou o Papa Paulo VI, S. Paulo VI, a associar, desde 1968, à Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a celebração do Dia Mundial da Paz. Hoje é já o 56.º Dia Mundial da Paz que se celebra, a que o Papa Francisco, no seguimento da dura experiência da luta nos últimos anos contra a pandemia, apôs o lema «Ninguém pode salvar-se sozinho». Só que à pandemia sucedeu, entretanto, a guerra absurda que assola violentamente uma parte da Europa e cujos estilhaços se fazem sentir em todo o continente e um pouco por toda a parte. Guerra absurda, porque não se trata de uma guerra entre dois exércitos para tal preparados e armados. Trata-se de um despejo da nojenta estupidez que nos habita sobre uma população humana pacífica, normal e sensata, que nada tem a ver com tamanha, incomensurável e incompreensível cegueira, que envergonha a humanidade inteira. Neste contexto, o suspiro humano pela paz transformou-se num brado imenso que há de com certeza atingir o céu. A paz é mais, muito mais do que a ausência de guerras. A paz é uma refeição saborosa, servida por Deus aos seus filhos. Na verdade, não temos sabido gerir como filhos e irmãos o pão nosso de cada dia, que em cada dia nos é dado. Daí que, do meio da guerra que a todos nos atinge, se levante outra vez este grito dorido pela paz. E é bom que não deitemos a perder esta oportunidade que Deus nos dá para tomarmos consciência de que estamos doentes e nos temos vindo a arrastar, ano após ano, no lamaçal da banalidade, da indiferença e da equivalência, em que vale tudo e tudo vale o mesmo, talvez a mais grave doença que afeta a humanidade deste tempo sem fontes e sem horizontes. Na verdade, nesta «noite do mundo», em que domina a escuridão, literal na Ucrânia, e a nefasta atração pela morte, palpável na guerra, mas também nas já consideradas conquistas da liberdade, como sejam a interrupção voluntária da gravidez e a eutanásia, tudo nos aparece sem Deus, sem rosto e sem rumo, só com fumo, sem irmão, sem irmã, tudo à medida sem medida da hipertrofia do «eu», que julga poder dispor de uma soberania e autonomia ilimitadas, sem sequer nos apercebermos do número cada vez mais elevado de deserdados, abandonados, refugiados e velhinhos que já perderam a soberania e a quem já roubámos a autonomia e a liberdade, e que continuamos a atirar com não disfarçada subtileza para o sótão das inutilidades.

7. Ao contrário, de Deus vem sempre um mundo novo, belo, maravilhoso. Tão novo, belo e maravilhoso, que nos cega, a nós que vamos arrastando os olhos cansados pela lama. Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir e receber outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: «O Senhor te abençoe e te guarde./ O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável./ O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz» (Números 6,24-26).

8. Olhada por Deus com singular olhar de Graça foi Maria, também Pobre, também Feliz, Bem-aventurada, Santa Maria, Mãe de Deus, que hoje celebramos em uníssono com a Igreja inteira. Para ela elevamos hoje os nossos olhos de filhos enlevados.

9. Que seja, e pode ser, Deus o quer, e nós também podemos querer, um Ano Bom, cheio de Paz, Pão e Amor, para todos os irmãos que Deus nos deu! E que Santa Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe nos abençoe também. Amen!

 

+ António, vosso bispo e irmão

 

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