A história da minha vocação inicia quando era adolescente, desde a idade de doze anos, recordo-me que queria ser padre. Por esta altura, tinha ideias simples sobre o que significava ser pároco, e, claro, a minha perspetiva do sacerdócio mudou muito com o tempo. Contudo, a minha convicção reside no facto de, mesmo jovem, reconhecer interiormente o chamamento de Deus. Com efeito, é claro para mim que o chamamento vem de um desígnio misterioso de Deus e não depende daquele que o recebe. A minha vocação, nesse sentido, é movida por um apelo que, em primeiro lugar, está escondido em Deus, sendo a vocação um mistério que se desvela com o tempo.
Assim, comparo a minha vocação com as dos apóstolos no Evangelho. É Jesus que escolhe os doze após uma noite de oração e diz: “não fostes vós que me escolheste, fui eu que vos escolhi”. Deste modo, à luz das Escrituras neotestamentárias, o discípulo nem sabe o que lhe vai acontecer mais tarde. Isto não significa que Deus forçou a minha liberdade, mas que esta reside na entrega abnegada e gratuita ao Seu projeto.
Obviamente, nada se fez da noite para o dia. Com efeito, o Senhor conduziu-me de ano para ano. Ele trabalhou-me para que eu entre sobre o caminho que traça para mim e não aquele que eu tinha imaginado. Tenho aprendido a deixar Deus ser o mestre do meu percurso e caminhar com confiança nos passos que ele planeou para mim.
Neste contexto, entrei no Seminário do Bom Pastor, em Ermesinde. Aqui, tive um ano excelente, no qual senti um bom acolhimento por parte da equipa formadora. Foi uma descoberta da vida comunitária. Igualmente, tratou-se de um ano de aprofundamento da fé pela descoberta dos grandes dados da fé. No ano seguinte, ingressei no Seminário Maior de Nossa Senhora da Conceição do Porto, também chamado Seminário Maior do Porto.
Nesta etapa, o meu caminho para o sacerdócio foi, simultaneamente, alegre e doloroso. Alegre, pelas graças recebidas, que sempre me fortaleceram na minha vocação, e por tudo o que recebi através da formação. Os anos formativos foram um longo e desafiante percurso que pude fazer somente com a ajuda de Deus, um tempo necessário ou, como os discípulos de Cristo no Evangelho, tive de aprender de Cristo deixar que Ele me transformasse, progressivamente.
É a partir deste ponto de vista que escolho e interpreto o meu lema sacerdotal: “O Sacerdócio é o amor do Coração de Jesus”
Tal significa que o sacerdote haure de Nosso Senhor, reclina-se sobre o Seu peito em oração, como o apóstolo São João, colhendo o amor que brota de seu coração divino, para depois transmiti-lo aos homens pela graça dos sacramentos. De tal modo, o Cura d'Ars, São João Maria Vianney, é, no meu percurso, um modelo e um guia.
Por conseguinte, a ordenação sacerdotal, em que solenemente culmina e se manifesta um processo de discernimento vocacional, radica na experiência do encontro com Deus. Em toda a sua imediatez equivale, nem mais nem menos, a um encontro pessoal com Deus. Tratando-se de um encontro com «o Deus real e verdadeiro, Deus da incompreensibilidade, o inefável Mistério da noite mística. Neste momento, a minha disposição só pode ser de gratidão. Antes de tudo, ação de graças ao Senhor pelos anos que me concedeu: anos com numerosos dias de alegria, momentos maravilhosos, mas também com noites obscuras, que atravessei confiado n’Ele. Mas, em retrospetiva, compreendo que as noites também foram necessárias e boas, constituindo mais um motivo de ação de graças.
Tenho a firme noção de que nunca traí as convicções que me motivaram, apesar das inevitáveis perseguições. Sempre resisti, lutei e perseverei quando senti que a mentira, a mediocridade ou a perversidade eram atuantes. Porém, não me arrependo dessas lutas travadas com determinação. O mais difícil, a meu ver, é sofrer pela Igreja.
Sublinho, também, que a Virgem Maria sempre esteve presente na minha vida, desde a infância até hoje. Foi quem me guiou rumo ao sacerdócio, encorajando-me com confiança, apesar do sentimento da minha indignidade e incapacidade. Maria ocupa um lugar privilegiado na jornada de discernimento vocacional que aqui partilho.
Similarmente, é muitíssimo o que devo a Santa Teresinha de Lisieux. Jamais cessarei de louvar e exaltar a Pequena Grande Santa que foi, verdadeiramente, assim a considero, a estrela propícia e sublime da minha vocação.
Outra figura de relevo foi o Papa São João Paulo II, o Papa que marcou a minha adolescência, pelo seu exemplo e testemunho de força e coragem. Foi ele quem me comunicou o entusiasmo da fé e o ardor subsequente. Com ele cresci no amor pela Igreja e na indispensável fidelidade ao Magistério.
Dedico uma palavra, ainda, ao Papa Bento XVI. Apoiou-me de forma extraordinária no início da minha vocação pela profundidade das suas homilias, pelas suas análises pertinentes e proféticas do nosso mundo e pelas suas reflexões luminosas. O exemplo da sua humildade e gentileza tocou-me profundamente.
Mais recentemente, os dois anos passados na paróquia de Alvite foram períodos de muita felicidade: fui profundamente feliz nas missões com os Cursilhistas , e estivemos muito unidos num ambiente alegre e fraterno. Foram, indubitavelmente, anos de graça. Agradeço especialmente ao Pe. Jorge Giroto, que foi para mim um pastor modelo e um amigo. Gostaria de realçar o quanto a amizade sacerdotal é importante na vida do sacerdote.
Santo Agostinho disse que toda a história é uma luta entre dois amores: amor-próprio até ao desprezo de Deus; e amor a Deus até ao desprezo de si mesmo, no martírio. E nesta luta é muito importante ter amigos, pois o amor de Deus, provindo da comunhão trinitária, encontra tradução humana em vínculos amorosos sólidos e benéficos.
Nas circunstâncias do mundo atual, ao sacerdote «toca padecer por sua parte algo que o leigo cristão também terá́ de suportar, e que é simplesmente resultante da contradição da Igreja por face ao «mundo», pelo facto de a fé́ cristã suscitar ao «mundo», hoje como sempre, a loucura e o escândalo, empregando categorias do epistolário paulino.
O sacerdócio, na atualidade, alberga todas as componentes da Esperança cristã. Na mesma linha, seja-nos permitido afirmar também a convicção de que, por detrás do discurso da crise que facilmente colhe as atenções da comunicação social e da opinião pública, esconde-se muitas vezes um auspicioso testemunho de fé́, de esperança e de amoroso compromisso com o próximo. Hoje, como dantes, está vivo no meu ser o desejo de «ir e fazer o mesmo» (Lc 10,37). Guardo no coração, feito o balanço de um longo e exigente caminho, que as melhores pessoas são boas naquilo que fazem na penumbra! Sem grandes floreados nem destaque para as massas!
Termino com palavras do marcante teólogo alemão Karl Rahner, as quais julgo que fornecem um bom roteiro para a vida do cristão contemporâneo e com as quais me identifico: “A Graça está em toda a parte como uma orientação ativa de toda a realidade criada para Deus, dado que Deus não a deve a nenhuma das suas criaturas para lhes conferir a sua especial finalidade”. De facto, é necessário que, mais do que ter certezas nas capacidades humanas, se deixe a Providência Divina agir por seu intermédio.
in Voz de Lamego, ano 93/30, n.º 4710, 14 de junho 2023