Rita Isabel Morais Tomaz Valadas Pereira Marques, filha de militar, nasceu a 26 de fevereiro de 1963. É licenciada em Política Social, pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Foi adjunta de Gabinetes Ministeriais dos XV e XVI Governos Constitucionais, na área da intervenção social nos gabinetes da Secretária de Estado da Segurança Social (Dra. Margarida Correia de Aguiar), do Ministro da Segurança Social e do Trabalho (Dr. Bagão Félix), da Secretária de Estado da Segurança Social (Dra. Teresa Caeiro) e do Ministro da Segurança Social, da Família e da Criança (Dr. Fernando Negrão). Integrou a direção da Cáritas, entre 2006 e 2011. Desempenhou diversas funções na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, foi Vogal da Mesa Administrativa e Administradora Executiva do Departamento de Ação Social. Está ligada à Associação Portuguesa de Psicogerontologia. Desde 10 de dezembro de 2020, é Presidente da Cáritas Portuguesa.
Voz de Lamego – Assumiu o cargo de presidente da Cáritas Portuguesa, durante a segunda vaga da pandemia da Covid-19. Como foi e é ser Presidente da Cáritas numa altura em que Portugal atravessa uma das piores crises da sua história?
Quando tomei posse estávamos de facto em plena vaga. Assumir este compromisso foi um misto de responsabilidade e de missão. É claro que a missão é bastante mais exigente nesta situação. Eu já tinha estado como vogal da direção da Cáritas em tempos de crise (2006/2011) mas nessa altura nada nos impedia de estar próximos …
O desafio maior foi tentar encontrar caminhos que permitissem que a Cáritas conseguisse chegar às pessoas mais frágeis e impedir o desalento. Temos um papel importante quer no equilíbrio do acesso aos meios básicos de vida, quer em animar as pessoas para poder olhar o futuro de uma maneira positiva e participativa. Nos próximos anos, a Cáritas tem de fazer aquilo que for preciso consoante a conjuntura.
Depois é um sinal de alento poder entrar neste desafio no ano em que a Cáritas celebra 65 anos de história. Celebrar é fundamental, seja qual for o momento da nossa vida e as circunstâncias em que estamos a viver. Atualmente vivemos momentos difíceis e a missão da Cáritas é ajudar a ultrapassar momentos difíceis. Temos muitos motivos para celebrar principalmente aqueles em que sentimos que cumprimos a nossa missão e ajudámos quem sofria a encontrar novas oportunidades.
Historicamente marcámos presença em momentos muito importantes e que foram fundamentais na vida dos portugueses. Celebrámos tudo o que fizemos, mas principalmente o dom daqueles a quem servimos. Hoje queremos também olhar para o futuro e contribuir para devolver a esperança aos portugueses.
VL – Como recebeu este convite do episcopado português?
Fiquei muito surpreendida, não esperava. Mas fiquei profundamente consciente da responsabilidade que tenho por este compromisso que assumi, ao aceitar o desafio de dirigir a Cáritas Portuguesa e ser serviço da Cáritas em Portugal. É material e espiritualmente muito desafiante
VL – Há mais responsabilidades agora do que quando esteve na primeira vez na direção da Cáritas?
Os momentos e as circunstâncias são totalmente diferentes. Além disto não estou hoje na Cáritas com a mesma responsabilidade que tinha no meu anterior mandato. O trabalho realizado pelo Prof. Eugénio Fonseca é uma herança que me deixa, por um lado, uma grande responsabilidade e, por outro, uma grande confiança porque hoje a Cáritas, ao nível nacional, é uma organização muito mais bem preparada e com capacidade de dar uma resposta muito mais abrangente em áreas que vão desde a subsistência, à empregabilidade, à educação ou à formação em Portugal e além-fronteiras. Não me parece que se possa medir o grau de responsabilidade, mas tenho consciência de que é uma grande responsabilidade!
VL – Na história da Cáritas é a segunda vez que é escolhida uma mulher. Poderá ser um sinal de valorização do papel da mulher na Igreja?
Na minha tomada de posse, as palavras do Sr. D. José Ornelas foram muito convictas, no sentido da importância de ter uma mulher no rumo da Cáritas. Na ideia que nos transmitiu era importante que a igreja integrasse o colo e o olhar de cuidado, que são características mais próprias da mulher. Não sei se é um sinal ou se, pelo contrário, é uma evidência de que o papel da mulher já é valorizado pela Igreja. Não é uma questão de género, é uma questão de olhar… mais rasgado… como eu gosto.
VL – Com a pandemia, acentuaram-se problemas e dificuldades. Em crises anteriores, as pessoas podiam estar juntas. Agora há mais exigências. Por outro lado, muitos dos voluntários passaram também a precisar de ajuda ou foram obrigados a manter-se mais resguardados. Como se lida com esta situação? E qual é a situação neste momento? O que enfrenta a Cáritas nestes dias de pandemia?
Desde o início da atual crise, que a rede das 20 Cáritas Diocesanas (e as redes que lideram e integram) responde ao aumento na procura de ajuda nos grupos considerados de apoio prioritário: população sénior, famílias e crianças em situação de vulnerabilidade, pessoas em situação de sem-abrigo, migrantes em situação de vulnerabilidade social.
A Cáritas assegurou apoios diferentes conforme a necessidade dos territórios nas várias fases da pandemia. Na primeira hora, todas as condições de saúde e higiene aos seus profissionais, voluntários e beneficiários. Num segundo momento a Cáritas Portuguesa disponibilizou um reforço de verba de apoio às Cáritas Diocesanas que nunca pararam o seu trabalho no terreno e identificaram como principal necessidade o acesso a bens alimentares.
Neste momento aquilo com que lutamos é com os efeitos causados pela Pandemia, ao nível social. Muitas famílias não conseguiram ainda recuperar a sua estabilidade financeira fruto do desemprego ou de cortes no seu rendimento mensal. Por outro lado, há famílias que perderam as suas fontes de rendimento onde tinham investido as suas economias em pequenas empresas, projetos de empreendedorismo, etc.
Desde abril de 2020 até fevereiro de 2021 pudemos apoiar mais de 10 mil pessoas através do programa “Inverter a Curva da Pobreza em Portugal”, que foi criado, primeiro como resposta de emergência e agora como um programa de apoio às Cáritas Diocesanas. No total estamos a falar de mais de 350 mil euros que correspondem a apoios em vales para aquisição de bens alimentares e de primeira necessidade e para o pagamento de despesas pontuais e urgentes (renda de habitação, água, luz…). Neste intervalo mais de 50% das famílias apoiadas não eram por nós conhecidas. Nunca tinham pedido apoio.
A dificuldade para a Cáritas é não conseguir perspetivar o que aí vem e estar consciente de que o número de apoios aumentou bastante e, por isso, hoje, em toda a rede nacional, são mais aqueles que procuram a nossa ajuda. Em 2019 tínhamos cerca de 100 mil pessoas e em 2020 foram já mais de 120 mil as pessoas que foram apoiadas.
VL – Falando de desigualdade e exclusão social, acha que a pandemia da Covid-19 vai comprometer o trabalho feito até agora para combater estas assimetrias?
Não acredito que vá comprometer, o trabalho continua a ser feito e a Cáritas está empenhada na realização e promoção de um conjunto de projetos que têm como objetivo, precisamente, o combate às desigualdades e as assimetrias por elas provocadas. Estamos comprometidos com a criação de projetos que possam ajudar as pessoas a inverter a sua situação ou, em relação àqueles que pela primeira vez precisaram de pedir ajuda, a evitar que possam entrar em ciclos de pobreza.
VL – Quais os grupos etários ou sociais que foram mais afetados nesta crise pandémica?
Afetados do ponto de vista social foram todos os que tinham o seu projeto de vida assente no seu vencimento e que se viu confrontada com cortes salariais devido a situações como o lay-off ou mesmo com o desemprego. Muitas pessoas com pequenas empresas, projeto ligados ao turismo, restauração, cultura, profissões precárias (limpeza, cabeleireiros, restauração, hotelaria…). Pessoas em idade ativa e com filhos a cargo e que tiveram de se reorganizar e, em muitos casos, tiveram mesmo de pedir ajuda. De referir aqui também a população migrante que se via muito apoiada financeiramente em atividades profissionais sem vínculo laboral e também os estudantes estrangeiros, principalmente, vindos de países de língua oficial portuguesa que se viram, também, impedidos de ter uma atividade laborar que complementa as suas bolsas ou o apoio das famílias.
VL – Que retrato pode fazer dos pedidos que vos chegam? E quem são as pessoas que pedem ajuda neste momento? Há algum padrão?
Como resultado da Pandemia retomo à resposta anterior. No geral, no atendimento, são famílias ou pessoas que têm dificuldade em estruturar a sua vida, em situação de desemprego, muitas vezes com limitações de formação ou problemas de saúde complementares… Depois temos todo um conjunto de projeto e de respostas sociais onde as famílias são integradas e apoiadas na medida das suas necessidades e através destes programas e projetos procuramos ajudar
VL – Têm tido dificuldade em responder a todos os pedidos de apoio ou até agora têm conseguido corresponder na totalidade?
É natural que haja pedidos que possam não ter uma resposta integral por parte da Cáritas, mas aquilo que nós asseguramos é que há um encaminhamento e um apoio coordenado com as entidades locais sejam as autarquias e juntas de freguesia, as comunidades paroquiais e outras organizações no terreno. Não há estrutura ou organização que possa por si só resolver o problema…
VL – O peditório público anual foi online, conseguiram angariar mais de 100 mil euros. Onde é que este dinheiro vai ser aplicado?
O peditório online foi uma atividade que foi muito importante para nós não apenas na perspetiva da angariação, mas também na visibilidade que foi possível proporcionar ao trabalho alargado que a rede Cáritas desempenha em Portugal. A verba angariada foi distribuída entre todas as Cáritas Diocesanas que o aplicam nos seus projetos locais, respeitando-se a autonomia de cada Cáritas Diocesana e as suas prioridades locais.
VL - Fale-nos da Iniciativa “Inverter a Curva da Pobreza em Portugal”. Obtiveram os resultados esperados? Ainda está no terreno?
Esta foi inicialmente uma campanha de resposta de emergência para apoiar as Cáritas Diocesanas logo no início da Pandemia, quando se começaram a sentir os primeiros efeitos sociais da COVID-19. Para além de ter avançado com uma verba própria, a Cáritas Portuguesa deu início a uma campanha de angariação que agora se tornou num programa de apoio. Foi uma iniciativa que cresceu dentro da própria rede Cáritas e que beneficiou muito do envolvimento de todos. A campanha, foi tornada programa, “Inverter a Curva da Pobreza em Portugal”, de apoio às Cáritas Diocesanas.
Apesar de não ser hoje uma campanha de angariação de fundos este programa subsiste pelos apoios que os portugueses continuam a confiar à Cáritas Portuguesa e pelo apoio de várias empresas que se juntaram a nós com os seus contributos e que têm sido fundamentais no nosso trabalho.
VL – Acha que a estratégia nacional de combate à pobreza, em que a Cáritas foi chamada a participar, vai funcionar? Algo que deve ser, então, tido também em conta no Plano de Recuperação e Resiliência...
O pensamento estratégico nestas áreas é sempre importante e, por isso, a Cáritas colaborará sempre na medida em que for solicitada a sua ajuda. O que eu penso é que o combate à pobreza não pode ser só visto como uma estratégia. A estratégia tem de se encontrar com o pensamento, o conhecimento dos territórios, a avaliação das desigualdades e das prioridades (nacionais e locais) e então nascer. É na proximidade que nós vamos fazer a diferença. É olhando uma a uma a história de vida das pessoas que retirámos da pobreza ou quando conseguimos impedir o ciclo de reprodução, quase familiar, do sistema da pobreza. Quando este conhecimento se encontra com o conhecimento estratégico aí é que nós temos a verdadeira condição de combater a pobreza. Nós acreditamos que a Cáritas tem condições de dar uma visibilidade no terreno diferente daquela que têm outras instituições. Não há nada mais próximo do que a Igreja do bairro.
Há necessidades que se resolvem com tostões e outras que nem com milhões. Se formos capazes de utilizar as verbas com seriedade, com um grande alinhamento e com medidas que sejam transversais a todas as áreas, nós vamos conseguir intervir e tornarmo-nos um país mais resiliente, mesmo para enfrentar situações que não conseguimos prever. Mas para isso, mais do que pôr milhões em cima da mesa, é preciso ter uma grande orientação na forma como se vai utilizar o dinheiro.
Tenho uma grande esperança e penso que temos todos de estar conscientes de que esta é uma oportunidade única, acho que não vamos ter outra igual. Estamos neste momento em condições de fazer diferente e de agir. Temos de ouvir quem está mais próximo, para ajudar a resolver os problemas que se veem à distância.
Nós não temos dúvida nenhuma do padrão da pobreza, da forma como ela acontece e para a resolução temos de ter grande coerência e perceber que a pobreza não é uma coisa, mas são muitas coisas diferentes. Tenho algum receio, mas quero que seja mais visível a minha esperança! Neste caminho temos de ser ambiciosos. Ver perto para olhar longe.
VL – Numa entrevista recente sublinhou que existe excesso de desperdício… de pessoas e de bens…
Infelizmente é verdade. Temos precariedade numa sociedade abundante. Só assim se entende que estejamos constantemente a encontrar evidências de desperdício. Nós desperdiçamos alimentos, materiais, tempo, sol, chuva, competências (umas vezes servem outras não), pessoas … Enfim … não temos uma medida certa para o valor nem para o “desvalor”. Lamento muito
VL – A pandemia colocou a descoberto a exclusão digital…
Uma das coisas que percebemos nesta Pandemia foi que é fundamental termos a capacidade de participar ao nível digital. A escola online não foi uma boa experiência para todas as crianças e nem foi uma oportunidade de crescimento para a sua maioria. As escolas tiveram dificuldades em acompanhar e em apoiar. E acentuaram-se algumas dificuldades …
Por outro lado, no mundo laboral foram também muitas as dificuldades, mas aquilo que funcionou foi o suficiente para nos provar que é possível recorrer ao digital para simplificar e até para aproximar. Nós mesmos na rede Cáritas fizemos essa experiência e percebemos que como equipa, em determinados momentos e a nível nacional, nos tornamos mais próximos e mais ágeis. Contudo, ainda não pode ser visto como uma ferramenta de combate à exclusão social e não se trata apenas de dar computadores às famílias, trata-se de lhes dar competências para a sua utilização no acesso aos serviços e à informação. Como noutras situações… É preciso garantir a Rede
VL – Numa entrevista recente, afirmou que o pior ainda está para vir. Como antecipar cenários e como se preparar para responder ao que aí vem?
Uma das coisas que me parece mais importante, enquanto Cáritas, é estar ainda mais presente nas relações de proximidade. Estou absolutamente convencida de que é pela proximidade que poderemos ir mais longe no combate à pobreza e a Cáritas é, por excelência, uma organização de proximidade. Há sinais que podemos ler ainda antes das evidências das estatísticas e da economia.
VL – Qual é o trabalho de coordenação da Cáritas Portuguesa com as Cáritas Diocesanas?
A Cáritas Portuguesa existe para estar ao serviço das Cáritas Diocesanas. Nós somos, por definição, o serviço de apoio e de coordenação na perspetiva nacional, mas existimos para responder aos desafios e às necessidades da nossa rede. Assim, como presidente da Cáritas Portuguesa a minha primeira preocupação é ouvir as Cáritas Diocesanas e procurar que o meu trabalho seja o reflexo das suas preocupações dando-lhe voz e levando-as aos fóruns necessários. A estrutura da Cáritas Portuguesa é uma estrutura de suporte ao trabalho que é feito localmente pelas Cáritas em cada diocese.
Na verdade, quem mandata a Cáritas Portuguesa é o Conselho Geral da Caritas, que define o Programa, o modelo de liderança e as prioridades. Animar a discussão profícua e eficiente é um enorme desafio em que espero ser útil
in Voz de Lamego, ano 91/29, n.º 4611, 1 de junho de 2021