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Entrevista com o Diác. João Miguel Pereira

No próximo Domingo, 4 de julho, será ordenado sacerdote o João Miguel Pereira, natural de Freigil, no concelho de Resende. Nasceu a 26 de dezembro de 1996 e é o segundo filho de Ernesto Pereira e de Maria Lúcia Rodrigues Pereira. Foi ordenado Diácono a 21 de novembro de 2020, na Sé de Lamego. A Voz de Lamego disponibiliza entrevista com ele, sobre alguns aspetos relevantes da sua biografia, caminhada vocacional e desafios que vislumbra para a Igreja e para o mundo atual.

Voz de Lamego: João Miguel, tendo que te dares a conhecer, que dirias aos nossos leitores?

Bom, nunca é fácil apresentar-me. Normalmente, quando me tenho de apresentar diante de alguma comunidade, digo o meu nome completo, a minha idade, onde nasci, em que etapa me encontro da minha caminhada vocacional (se é que isso é definível), mas sinto que isso é sempre pouco… no fundo, como nos ensinou uma vez o nosso bispo, hoje estamos muito reféns dos currículos mas para Deus (e espero que para as pessoas também) nós valemos mais por aquilo que somos do que pelo que fazemos ou fizemos; ainda que isso espelhe uma percentagem daquilo que é a nossa personalidade. Bom, assumido esse risco de amputar a maior parte do que sou, aqui vai: Sou o João Miguel Pereira, nasci em 26 de dezembro de 1996, sou natural da freguesia de Freigil no concelho de Resende, frequentei entre 2014 e 2020 os Seminários de Lamego e Interdiocesano de São José (Braga) e a Igreja confiou-me o ministério diaconal em ordem ao presbiterado a 21 de novembro de 2020.

Como chegaste aqui, desde a descoberta da vocação até à decisão?

É difícil dizer responder a isso sinteticamente. Quem já me ouviu dar o “testemunho vocacional” sabe bem que, mesmo “aligeirando a coisa”, não o faço em menos de 5 minutos de exposição. Eu nasci no seio de uma família cristã, fui habituado a ir à missa ao domingo desde bebé (é engraçado que ainda tenho memórias de ir à igreja ao colo da minha mãe e ficar rabugento se ela me punha no chão), frequentei a catequese, entrei para o escutismo católico, comecei eu mesmo a dar catequese aos miúdos… Não sei se o que vou dizer será um quebra-cabeças para a diagramação do jornal, mas era bom que fosse divulgado, pelo menos na versão online… até como instrumento pastoral para os catequistas usarem nas catequeses vocacionais. O “bichinho” começou em miúdo: recordo-me de ir à missa com a minha mãe e estar atento ao que fazia o padre e quando chegava a casa construía o meu próprio “altar”, enrolava-me num lençol branco, pegava um copo com água e umas bolachas maria, e reproduzia o que via na missa.
Na altura as pessoas perguntavam-me se eu queria ser padre. Eu dizia que não, que só queria ser ajudante (acólito, na altura não sabia este nome). Como a maioria das crianças, fiz o típico percurso da catequese. Recordo que não gostava muito de me levantar cedo para ir à missa e à catequese, principalmente no inverno… por isso, sei que se não fosse a insistência da minha mãe, que não cedia aos meus amuos e caprichos, talvez hoje fosse ateu, mas daqueles que o são sem sequer terem razões para... No fundo, a minha mãe foi como Moisés que, diante de Israel, indicou o caminho de Deus sem ceder aos caprichos de um povo de dura cerviz. Nos últimos anos de catequese, mesmo que a minha mãe não dissesse nada ou não pudesse acompanhar-me, não deixava de ir à missa, e até já o fazia com certo gosto. O problema foi quando fiz o crisma. Afastei-me. Nunca deixei de ter fé, mas foi aquela época difícil da adolescência em que queremos criar a nossa diferença e começamos por partir tudo o que trazemos na bagagem… E o facto de já não ter a catequista a marcar faltas levou-me a pensar que, fosse à Igreja ou não fosse, ninguém iria notar a minha presença ou a minha falta e se me lembrasse de rezar podia fazê-lo em casa. Após o crisma andei mais ou menos um ano sem ir à missa, a não ser nas festas… Sentia-me incompleto mas não fazia ideia do que me estava a faltar. Acho que a psicologia ajuda a explicar esta sensação normal da adolescência e os riscos ou benefícios adquiridos pelo indivíduo, consoante o grupo onde encontra suporte e se integra. Esta insatisfação fez-me recuperar um desejo de criança: ser escuteiro. Entrei para o escutismo católico e isso foi, sem dúvida, um contributo grande para a entrada no Seminário. Mas o convite da minha prima para integrar o grupo coral da minha paróquia talvez tenha sido a principal razão. Quando ela me interpelou eu respondi-lhe: “Oh rapariga, deves estar doida, olha eu no coro, só se for para partir os vidros e assustar os santos”. Ela não conseguiu dessa vez; mais tarde voltou a tentar, e dessa vez convenceu-me a ajudá-la a dar catequese. Dar catequeses fez-me sentir importante para a vida da Igreja, útil para Deus que se quer dar a conhecer e estabelecer relação com cada criatura sua. Passei a ir regularmente à missa, e ensinar as crianças fazia-me sentir bem ao mesmo tempo que o esforço e criatividade empenhados para lhes responder e conseguir explicar certos conteúdos, faziam despertar em mim novas interrogações. Então ia pesquisar. Ao fazê-lo fui inflamando a chama que já cá estava desde criança mas foi sendo esbatida pelo preconceito que cada vez mais assombra os círculos escolares de que “querer ser padre é uma coisa estranha”. Nessas pesquisas encontrei-me com a vida de São Francisco de Assis, a sua mudança radical para responder ao amor de Deus, refletido na caridade com os pobres, com os doentes e marginalizados. Quanto mais me adentrava nos conceitos da fé e no testemunho de fé de outros (sobretudo os apóstolos e os santos), mais achava que deveria aprender para poder ensinar melhor e alimentava o desejo de conhecer e ficar mais perto de Jesus. Então pedi várias vezes formação ao meu pároco: para me inscrever em formações para catequistas… Um dia acabei mesmo por lhe pedir para me levar a visitar o Seminário Menor. Foi no caminho para o Seminário Menor que a pregunta me atingiu como flecha disparada desde a boca do meu pároco, mesmo que cá dentro já andasse a remoer há muito: “João, tu sentes-te chamado para ser padre?”. Fiquei envergonhado na ocasião… a resposta não foi mais do que um “talvez… não sei, mas é isso que gostava de descobrir”. Da visita ao Seminário Menor, que aconteceu sem ninguém lá em casa saber, pois só no dia seguinte é que contei a minha mãe que tinha ido ao Seminário no fim das aulas (mesmo antes do autocarro chegar para não ter de ouvir aquilo que ela se lembrasse de dizer), surgiu a minha inscrição para participar no pré-seminário. A partir daí as coisas foram desenrolando-se com o acompanhamento da Equipa Formadora do Seminário. Conclui o 12º ano na Escola Secundária do meu concelho e comecei a ir ao Seminário Maior aos encontros do pré-seminário. A oração intensificou-se nesse intervalo de tempo, pedi a Deus que me iluminasse pois sabia que era uma decisão importante e se não fosse vontade d´Ele as coisas não iam dar certo. Pedi-Lhe alguns sinais que me confirmassem e acredito que os recebi. Nossa Senhora (de Fátima ou dos Remédios) sempre me acompanhou neste percurso, escutando os meus pedidos e conferindo-me o seu apoio, desde logo em certas dificuldades académicas. A minha mãe inicialmente não acolheu bem a ideia de eu ir para o Seminário e querer ser padre mas com o tempo habituou-se e entusiasmou-se. Atualmente a minha família mais próxima e amigos aceitaram e apoiam-me na decisão.

O que pesou mais na decisão de avançar para o sacerdócio e quais as perguntas que te fizeste?

Sempre gostei muito de história, geografia, das ciências da natureza e depois de geologia e biologia. Eu julgava que o meu futuro passaria por aí. Aliás, a minha professora de biologia quando soube que eu iria para o Seminário no ano seguinte confessou-me que ficou dececionada porque me estava a imaginar como futuro professor ou investigador. Pelo contrário, nos círculos escolares e nas comunidades onde eu fazia vida (e julgo que no geral das comunidades), escolher ir para o Seminário era visto como algo estranho… não era normal… era visto ou como uma imposição dos pais (para filhos malcomportados ou desleixados no estudo) ou como uma forma de ter um curso superior para no final desistir da ideia de ser padre e poder dar aulas (como se não existissem formas mais baratas e fáceis de ser professor). Aliás, até às vésperas da ordenação diaconal, eu tive gente próxima a dizer-me que eu quando tivesse o “canudo” ia desistir da ideia de ser padre. Muitas vezes temos poucos apoios e incentivos, somos gozados e criticados, atribuem-nos as etiquetas de alguns maus exemplos que surgem no clero (como em toda a parte onde há seres humanos, afirmo): há muita gente a deixar-se ser instrumento nas mãos do divisor, a encarnar o mau espírito nas suas palavras e ações. Confesso que o gosto pela biologia não desapareceu… de certo modo a admiração que sinto quando me confronto com a beleza das criaturas e a incrível complexidade das células, da psicologia, da evolução das espécies, da história universal, dos mistérios do universo… faz-me vislumbrar como Deus é bom e belo, como criou tudo com sabedoria, como se empenhou carinhosamente e minuciosamente a dar génesis ao universo: tomara que nós não o acabemos por destruir. As ciências naturais aproximam-me de Deus e apaixonam-me por Ele.

Como foi o percurso do Seminário e como tem sido o teu estágio pastoral, num contexto de pandemia?

Eu costumo dizer que várias vezes fiz e desfiz as malas, literalmente. Há pessoas que criam estereótipos de que a vida em Seminário é um penoso sacrifício diário e outras de que é uma borga libertina… tal como em relação à vida de ministro ordenado. Na realidade não é uma nem outra e são muito aquilo que nós quisermos fazer dela, da forma como a encaramos, a forma como nos empenharmos conjuntamente na construção da casa comum, na estima mútua e na intimidade com Jesus. Claro que há choques, temos todos personalidades diferentes e por mais que não queiramos todos acabamos por errar e afetar a vida da comunidade. Claro que o trabalho académico exige esforço e traz dores de cabeça e poucas horas de sono. Claro que há tarefas na gestão da casa nas quais todos temos de colaborar e às vezes a vontade é pouca e o tempo finito. Claro que todos temos arestas que precisam de ser limadas pelos que têm a missão de nos formar e toda a gente tem resistências à mudança. O importante é, diante das contrariedades, não desistir… se assim não fosse a Igreja não teria durado mais que um século, já vai em mais de 20. Fazer e desfazer a mala pode até ser um bom exercício… enquanto se arrumam as coisas dá tempo para acalmar, para arrefecer e ver os problemas com novo olhar, para recordar novamente por quem estamos ali, quem nos chamou e a que missão nos chamou, para dar uso á balança e ver como as coisas boas e sucessos que lá vivemos pesam mais que as dificuldades, para renovar o ânimo e ganhar coragem para deitar de novo “mãos à massa”. Felizmente também aparecem “os três enviados de Deus”, colegas, diretores espirituais e formadores e até pessoas amigas nas paróquias por onde passamos, que escutam os nossos lamentos e alimentam a esperança, mesmo que dê vontade de rir, incrédulos como Sara. Por outro lado, esta inserção em permanência na vida paroquial viu-se limitada pelos fatores advindos da covid-19, ao mesmo tempo que nos interpelou a novas formas de criatividade pastoral ainda que, penso, não tenha sido possível colmatar o que se perdeu com a proximidade corporal… A avaliação terá de ser feita ´a posteriori´, mas dá para sentir que as pessoas precisam urgentemente de momentos de confraternização, de ver os rostos dos outros descobertos das máscaras, mais que de palavras (sobre tudo os idosos e doentes) precisam de gestos de afeto (abraços, beijos, as mãos que agarram e seguram), muita gente sentiu fome de Deus e sede da oração comunitária mas muita outra deixou morrer a religiosidade (pelo menos a comunitária), há olhos (de quem se viu privado de se despedir dos entes-queridos que perderam imprevisivelmente) a chorar um luto que ficou incompleto… está a ser um desafio, mas sê-lo-á, imagino, ainda no futuro pós-covid.

Quais são os maiores desafios para um padre nos dias que correm? E para a Igreja?

Julgo que os desafios são os mesmos de sempre, os mesmos que tiveram os apóstolos e os primeiros padres da Igreja, num contexto diferente como sempre assim foi. Eles resumem-se num só: propor a Boa-Nova de Jesus Cristo aos nossos contemporâneos. Não é fácil hoje, pelos motivos de hoje, como não o foi noutras épocas, pelos motivos de então. Por exemplo, acho que um grande desafio será continuar a inculturação do cristianismo e dotar as pessoas das chaves de leitura para que se consigam adentrar na religiosidade. Hoje vivemos numa cultura do imediato, do iminente/evidente, do passageiro/efémero, da imagem e pouco da palavra, da autossuficiência/egoísmo, agora até da virtualidade em substituição da presença corpórea… Isto daria uma longa reflexão e dissertação, não é a oportunidade certa aqui… Mas sinto que é uma questão muito rica e interessante, cuja resolução passará muito pela catequese, pela pastoral da afetividade e pelo testemunho de vida que conseguirmos empreender (todos e não só os padres).

Situando-nos sobretudo na nossa diocese de Lamego, as maiores dificuldades e as maiores potencialidades que se encontram nas paróquias para onde somos enviados?

Haveria muitas a assinalar. Vou apenas pegar em duas. A nossa diocese, como quase todo o interior, encontra-se envelhecida. Os idosos estão muitas vezes longe dos seus filhos e netos que se viram obrigados a procurar trabalho nas grandes cidades ou no estrangeiro. Por outro lado, na sua maioria, demonstram grande desejo e abertura para as coisas de Deus. Aqui está uma oportunidade para testemunhar (ser mediação) de Cristo próximo e compassivo pelas dores humanas. O reverso da medalha pode ser a grande dificuldade. Que futuro para as nossas comunidades se a juventude foge das nossas aldeias e mesmo os poucos que ficam são quase todos como reza a anedota dos morcegos “crismou-se: pisgou-se”? Fazendo um trocadilho com as palavras de São João Paulo II: Como fazer jovem a Igreja se os jovens não fizerem a Igreja?

Uma palavra para os nossos seminaristas e para aqueles que ponderam entrar no Seminário?

Entrar no Seminário não significa diretamente que se vai sair de lá padre. Quando na primeira reunião de comunidade que tive no Seminário o Reitor perguntou qual era o nosso desejo ou perspetiva a minha resposta foi consciente e convicta: crescer como ser humano e como cristão e descobrir a minha vocação. Acho que se soubermos integrar todas as coisas, tudo nos fará crescer, tanto os momentos bons como os menos bons. Se já és seminarista: tem esperança, entrega-te nas mãos do Senhor e abre-te à sua graça mas esforça-te como se tudo dependesse do teu trabalho! Se pensas entrar no Seminário: coragem, valerá a pena, tudo o que damos a Deus recebemos a multiplicar. Se Jesus te chama, sê forte e corajoso pois Ele estará contigo.

Qual o lema que escolheste para a tua ordenação e vida sacerdotal e porquê?

Escolheria toda a passagem de Jo 15, 9-17. Foi a perícope escolhida para a semana de oração pelos seminários no ano em que eu entrei no Seminário e escolhi-a como “carta magna” para me inspirar e acompanhar no caminho de discernimento vocacional. Sobre ela escrevi a minha dissertação de mestrado. Não a podendo colocar toda, escolhi um excerto do versículo 15: “Chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi da parte de meu Pai”. Creio que estas palavras resumem tudo o que Jesus fez e disse e a missão que ele confiou aos seus discípulos. Desejo, no fim da minha vida terrena, sentir-me digno de afirmar essas mesmas palavras.

 

in Voz de Lamego, ano 91/33, n.º 4615, 30 de junho de 2021

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