A festa em honra de Nossa Senhora dos Remédios marca um tempo importantíssimo para a cidade de Lamego e para a região, com um conjunto diversificado de ofertas culturais, artísticas, lúdicas. Com a pandemia, em 2020 e em 2021, o programa das festas foi grandemente afetado, não se deixando, porém, de assinalar e viver este grande acontecimento.
Na parte religiosa, é ancestral a novena de preparação, à qual acorre número significativo de devotos da cidade e das paróquias vizinhas, culminando com a Eucaristia solene no dia 8 de setembro, e em anos anteriores, com a majestosa Procissão.
Nesta semana quisemos escutar o Reitor do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, reverendo Cónego, Pe. João António, que nos fala das origens desta devoção, do conteúdo da festa, da conjuntura atual na vivência da fé, caracterizando, brevemente, a sociedade do nosso tempo.
VL – Agradecemos, desde já, a disponibilidade do Sr. Reitor que, no meio de tantos afazeres e preocupações, nos dispensou parte do seu precioso tempo. Vamos então à primeira questão. Como surgiu a invocação da Nossa Senhora dos Remédios?
É sabido que Nossa Senhora tem muitas invocações. Desde a «cheia de graça» (cf. Lc 1, 28) até à improvável «Nossa Senhora do Esquecimento», são centenas (para não dizer milhares) as invocações acopladas à figura da Mãe de Jesus. A propósito deste último título, ele está relacionado com uma aparição de Nossa Senhora em 1831, perto de Madrid. O objetivo era mostrar às pessoas que são tantas as vezes em que se esquecem d'Ela. Mas acrescentou logo que, ainda que os homens se esqueçam d'Ela, Ela nunca Se esquece dos homens.
Na verdade, uma só é Maria, mas são muitos os títulos que Lhe fazem companhia. Concretamente, o culto de Nossa Senhora dos Remédios começou no século XII, com São João de Mata e São Félix de Valois. Foram eles que, em 1198, fundaram a Ordem da Santíssima Trindade. Uma das suas prioridades era resgatar os cristãos feitos reféns.
Como facilmente se compreende, eram necessárias avultadas somas de dinheiro para este empreendimento. Foi então que São João da Mata recorreu à intercessão de Nossa Senhora, pedindo-Lhe que fosse o «remédio» naquela aflição. E Nossa Senhora apareceu-lhe entregando-lhe uma bolsa cheia.
A partir de então, começaram a dar a Maria o nome de Nossa Senhora do Bom Remédio, do Remédio ou dos Remédios. Tornou-se Padroeira da Ordem, que atualmente celebra a sua festa no dia 8 de outubro. Percebe-se, assim, que a representação mais antiga de Nossa Senhora dos Remédios mostre a Virgem sentada, com o Menino no braço esquerdo e uma bolsa de dinheiro no braço direito.
Como chegou este culto a Lamego?
Sabe-se que, quando chegou a Lamego como Bispo (1551), D. Manuel de Noronha trouxe algumas imagens de Nossa Senhora, entre as quais Nossa Senhora do Leite. Acontece que, em Lamego, tal imagem foi sempre venerada como Nossa Senhora dos Remédios. Provavelmente, na primeira Capela que existiu neste lugar (dedicada a Santo Estêvão e inaugurada em 1361), já haveria uma escultura de Nossa Senhora dos Remédios. É uma hipótese que carece de confirmação documental, mas que tem alguma consistência. O certo é que, quando foi concluída a segunda Capela, em 1565 (no atual Pátio dos Reis), o culto a Nossa Senhora dos Remédios adquiriu uma projeção desmesurada. É seguro que, no século XVI, já havia Festa em Sua honra, com Novena e Eucaristia no dia principal da Solenidade: até 1777, a 5 de agosto e, a partir de 1778, a 8 de setembro.
Nesta conjuntura (ainda) de pandemia, considera que a afluência gere o entusiasmo próprio de uma época festiva?
É claro que a pandemia afetou bastante aquele que era o decurso habitual da Festa. O interior do Santuário (que se enchia por completo durante a Novena) teve de ser adaptado às restrições decorrentes da situação que estamos a viver. Apesar disso, nestes dois anos, a afluência tem sido assinalável e com um entusiasmo (vocábulo que, etimologicamente, significa «ter Deus em nós») que, embora sofrido, se mantém vivo e contagiante. Diria que é um entusiasmo que congrega o sorriso com as lágrimas. Tudo, porém, envolvido por uma fé genuína e profunda.
Crê que esta época tem influência no «orgulho» de ser lamecense?
Sem dúvida. Dizer Lamego é dizer «Nossa Senhora dos Remédios». É a primeira (e principal) associação que qualquer peregrino faz. É Nossa Senhora dos Remédios quem mais leva Lamego ao mundo e quem mais traz o mundo a Lamego. Pode dizer-se que Ela é a «primeira Dama» de Lamego, Aquela que mais gente para aqui chama e Aquela que o povo mais ama.
Qual a importância e o significado da fé nestes tempos de pandemia COVID-19?
Se algum aspeto a pandemia ressaltou foi a insuficiência de todas as vias de solução dos problemas a que estávamos acostumados. A própria ciência não estava preparada para responder aos avanços inopinados da pandemia. Graças a Deus, têm sido céleres os esforços empreendidos, mas, mesmo assim, ainda pairam múltiplas nuvens de incerteza. Nenhuma instância por si só é capaz de fazer frente à magnitude desta situação. A fé constitui uma oferta de sentido a existência, sobretudo para as horas de tormenta. E são muitos os que têm recorrido à «vacina C», a «vacina Cristo». É de lágrimas a escorrer de modo convulso que muitos vêm ao Santuário nas horas de aflição que estamos a viver. E foi com a imagem de Nossa Senhora dos Remédios que muitos partiram para a eternidade.
De que modo é que todas estas restrições condicionaram as festividades católicas?
Como é óbvio as restrições impostas pela COVID-19 condicionaram não só as festividades, mas todas as celebrações. Basta pensar nas distâncias entre as pessoas (inicialmente de 2m, atualmente de 1,5m) para determinar uma redução acentuada na participação nas celebrações. Graças a Deus, o Santuário conseguiu uma alternativa viabilizada pela presença no Adro contíguo. Com as portas abertas e a oferta de som, as pessoas sempre puderam participar sem que se notasse uma grande redução no seu número.
Para si, quais são as maiores virtudes e os maiores defeitos da sociedade contemporânea?
É uma pergunta (Vergílio Ferreira diria uma interrogação) de enorme complexidade. É notório que vivemos mais um processo de mudança, de viragem. Mais do que uma mudança de época, estamos em plena época de mudança. Creio que temos de superar a tendência para a auto-suficiência que se divisa em muitos sectores. As pessoas contam demasiado com as suas forças e nem sempre se abrem aos outros, aos mais pobres e a Deus. Precisamos de integrar a espiritualidade como dimensão estruturante da vida. É importante que reaprendamos a arte da escuta e o valor do silêncio, como elementos integrantes da própria comunicação. O momento que atravessamos é difícil. Há quem anteveja cataclismos em série. Mas, como alertou o teólogo Eberhard Jüngel, «quanto maiores são as adversidades, tanto maiores são também as possibilidades». Há muito desespero a latejar em imensas vidas. Temos de ser, por isso, «arautos da esperança». Há um mundo novo que espera por nós. O que não podemos é começar a desistir ou desistir de (re)começar. Os cristãos têm uma missão decisiva: oferecer a todos razões para não desistir. Até porque, como sublinhava o grande Santo Agostinho, «é quando parece que tudo acaba que tudo verdadeiramente começa». Estes são, decididamente, tempos de (re)começo. E Deus não pode ficar de fora. Tanto mais que Ele está dentro de tudo. Cada ser humano é um santuário habitado por Deus. Com Deus, faremos do mundo uma «filadélfia», isto é, um mundo de «amigos» e de «irmãos». Dirão que é meramente utópico? Deus colocou o mundo nas nossas mãos para fazermos dele um lugar de beleza e de fraternidade!
in Voz de Lamego, ano 91/40, n.º 4622, 1 de setembro de 2021