1. O calendário litúrgico assinala Hoje o oitavo dia do Natal do Senhor. E a Lei de Deus mandava que nesse oitavo dia se celebrasse a festa da circuncisão, que incorporava o recém-nascido no povo da Aliança, acompanhada da festa da dádiva do Nome, neste caso Jesus, como o anjo tinha dito aquando da Anunciação. O calendário civil assinala Hoje o primeiro Dia do Ano de 2022, tradicionalmente designado como «Dia de Ano Bom», pois desejamos que o ano inteiro seja «bom», isto é, visto e guiado sob o olhar bom de Deus [«E Deus viu que era bom!»]. Neste Dia celebramos sempre a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a que anda associado também, desde 1968, o Dia Mundial da Paz, que vai já na sua 55.ª quinta edição.
2. A figura que enche este Dia, e que motiva a nossa Alegria, é, portanto, a figura de Maria, na sua fisionomia mais alta, a de Mãe de Deus, como foi solenemente proclamada no Concílio de Éfeso, no ano 431, mas já assim luminosamente desenhada nas páginas do Novo Testamento, por exemplo, nos lábios de Isabel, quando responde à saudação de Maria com aquele grito grande: «De onde me é dado que venha ter comigo a “Mãe do meu Senhor?”» (Lucas 1,43), que ainda hoje ecoa nos nossos lábios no início de cada «Santa Maria, Mãe de Deus…».
3. É assim que a encontramos no Lecionário de hoje. Desde logo naquela menção sóbria, e ousamos mesmo dizer pobre [na riqueza espiritual que o termo contém], com que S. Paulo se refere à Mãe de Jesus, na leitura que há pouco tivemos a graça de ouvir: «Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei» (Gálatas 4,4). «Nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei». Ao todo, seis palavras no sóbrio texto grego [oito no português], e, ainda assim, duas repetidas: «Nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei». Nascido de uma mulher, isto é, como todos nós, nosso irmão em humanidade; nascido sujeito à Lei, isto é, membro do povo hebreu, a quem a Lei de Deus tinha sido dada. Nesta linha breve e densa, condensada, e, ainda assim, com o excesso daquela repetição só aparentemente desnecessária, aparece compendiado o mistério da Incarnação, ao mesmo tempo que se sente já pulsar o coração da Mariologia: Maria não é grande em si mesma; é, na verdade, uma «mulher», verdadeiramente nossa irmã na sua condição de humana criatura. Não é grande em si mesma, mas é grande por ser a Mãe do Filho de Deus, e é aqui que ela nos ultrapassa, imaculada por graça, bem-aventurada e bem-aventurança, nossa mãe na fé e na esperança. Maria não é grande em si mesma; vem-lhe de Deus essa grandeza.
4. O Evangelho deste Dia de Maria (Lucas 2,16-21) abre com a «corrida», à pressa, dos pastores dos campos de Belém até à manjedoura (Lucas 2,16), imitação da «corrida», à pressa, de Maria, desde Nazaré até Ayin Karem, para «visitar» Isabel (Lucas 1,39), imitação ainda da «corrida» dos 72 discípulos enviados em missão sem paragem nos apeadeiros (Lucas 10,4) e da «corrida» de Pedro (Lucas 24,2), dos dois discípulos de Emaús (Lucas 24,33), da Páscoa do Egito comida à pressa (Êxodo 12,11), do mensageiro de Isaías que corre sobre os montes (52,7), das mulheres da Páscoa que devem ir depressa levar a notícia (Mateus 28,7). Enfim, da imensa correria de todos os discípulos a partir da Páscoa de Jesus. É a alegria de uma Notícia Feliz, a alegria do Evangelho, que faz correr tanta gente e que faz correr tanto!
5. Todos ficam admirados, apenas admirados, com as palavras dos pastores (Lucas 2,18). Em contraponto com o espanto de todos os que ouviram as palavras dos pastores, Lucas pinta um quadro mariano de extraordinária beleza: «Maria, ao contrário, guardava todas estas palavras, compondo-as no seu coração» (Lucas 2,18-19). Coisa semelhante é dita de Maria aquando do episódio do encontro de Jesus no Templo, sentado entre os doutores. Diz o narrador que José e Maria não compreenderam a palavra que Jesus lhes disse (Lucas 2,50), e também é dito que Maria guardava todas as palavras no seu coração (Lucas 2,51). Maria, a Senhora deste Dia, aparece a guardar com ternura e com tempo todas estas Palavras e acontecimentos. O verbo guardar implica atenção cheia de ternura, como quem leva nas suas mãos uma coisa preciosa. Este guardar atencioso e carinhoso não é um ato de um momento, mas a atitude de uma vida, uma vez que o verbo grego está no imperfeito, que implica duração. Chegar à fé e à sua compreensão requer tempo e reflexão, também da parte de Maria. O outro verbo belo mostra-nos Maria como que a compor, isto é, a «pôr em conjunto» (symbállô), a organizar um álbum, para poder voltar sempre a ver melhor e melhor entender. É como quem, com aquelas Palavras, compõe um Poema, uma Sinfonia, e se entretém a vida toda a trautear essa melodia e a conjugar novos acordes de alegria.
6. Esta solicitude maternal de Maria, habitada por esta imensa melodia que nos vem de Deus, levou o Papa Paulo VI, S. Paulo VI, a associar, desde 1968, à Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a celebração do Dia Mundial da Paz. Hoje é já o 55.º Dia Mundial da Paz que se celebra. A paz é uma refeição saborosa, servida por Deus aos seus filhos. Chega, portanto, a todos, pastores, fiéis leigos e a todos os homens de boa vontade, e a todos sacia e desafia a desenhar um mundo novo e feliz para todos, hoje, amanhã e sempre. Esta paz saborosa atinge-nos em cheio, pois todos estamos imersos no lodaçal da banalidade e da indiferença, talvez a mais grave doença que afeta a humanidade deste tempo sem fontes nem horizontes. Na verdade, nesta «noite do mundo» em que domina o princípio da necrofilia, a nefasta atração pela morte, tudo nos aparece sem rosto e sem rumo. É preciso, portanto, abrir os olhos, dar asas aos nossos sonhos belos, dar as mãos e ter a coragem de recomeçar. Que não nos fechemos no mundo egocêntrico, egolátrico e autorreferencial da hipertrofia do «eu», que pensa que se basta a si mesmo, e não precisa de nada nem de ninguém, conforme o paradigma de Laodiceia. Contra a sedução das ideologias, que não salvam ninguém, de reduzir o mundo e o homem a três dimensões – comprimento, largura e altura –, anulando o horizonte de Deus, compete-nos a todos dar um novo rosto à família, à escola, à política, aos media, e remarmos todos juntos para construir novas atitudes e novas relações estáveis e felizes, assentes na gratuidade, na fraternidade e no amor, novos cenários que proporcionem que chegue a todos os homens o mundo belo que Deus a todos reparte dia após dia. É preciso educar para a paz, isto é, educar para sabermos acolher o outro, diferente de nós, e olhar para ele com amor e sem preconceitos. Significa isto respeitar e acolher o outro nas suas diferenças, e não querer anulá-las e nivelar tudo pelo género neutro, como se continua a querer fazer na nossa velha Europa cada vez mais desencantada, (des)infetada e desenraizada. Educar, na sua etimologia latina, de educere, significa, não levar para dentro de qualquer prisão do «eu» ou outra, mas conduzir para fora de si mesmo, ao encontro dos outros e da realidade por natureza plural. E é sempre bom lembrar que a justiça é o sabor que vem de Deus, e a paz não é a paz romana, assente no poder das armas, nem a paz do judaísmo palestinense, assente nos acordos entre as partes. A paz é um Dom de Deus! Portanto, mais do que conquistá-la, é preciso recebê-la e partilhá-la.
7. De Deus vem sempre um mundo novo, belo, maravilhoso. Tão novo, belo e maravilhoso, que nos cega, a nós que vamos arrastando os olhos cansados pela lama. Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir e receber outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: «O Senhor te abençoe e te guarde./ O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável./ O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz» (Números 6,24-26).
8. Que seja, e pode ser, Deus o quer, e nós também podemos querer, um Ano Bom, cheio de Paz, Pão e Amor, para todos os irmãos que Deus nos deu! E que Santa Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe nos abençoe também. Amen!
Que Deus nos abençoe e nos guarde,
Que nos acompanhe, nos acorde e nos incomode,
Que os nossos pés calcorreiem as montanhas,
Cheios de amor, de paz e de alegria,
Que a tua Palavra nos arda nas entranhas,
E nos ponha no caminho de Maria.
O amor verdadeiro está lá sempre primeiro.
O fiat que disseste, Maria, é de quem se fia
Num amor maior do que um letreiro.
Vela por nós, Maria, em cada dia
Deste ano inteiro,
Para que levemos a cada enfermaria,
A cada periferia,
Um amor como o teu, primeiro e verdadeiro.
Igreja Catedral de Lamego, 1 de Janeiro de 2022, Homilia na Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, e 55.º Dia Mundial da Paz.
+ António, vosso bispo e irmão