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Noite de Natal

1. Ainda lá ao longe ecoava o pregão de Isaías: «Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado, e tem o Poder sobre os seus ombros» (Isaías 9,5), e já um anjo descia à fria noite de Belém, e ei-lo que anuncia aos pastores: «Nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador, que é o Cristo Senhor. Isto vos servirá de Sinal: encontrareis um recém-nascido envolto em faixas deitado numa manjedoura. E logo se juntou ao anjo um coro celestial que cantava: Glória nas alturas ao Deus Santo, e paz na terra aos homens que Ele ama tanto!» (Lucas 2,11-14).

2. Os anjos mostram um Deus providente, condescendente, descido ao nosso chão, ao nosso coração. Diz um antigo comentário rabínico à Escritura Santa que são 10.000 os anjos que acompanham e dirigem cada gota de chuva para que ela chegue ao seu destino, e que um anjo recebe cada uma das 620 Palavras hebraicas do Decálogo que Deus disse no Sinai e a traz com carinho até cada um de nós e nos suplica que a ponhamos em prática. Deus à nossa beira, à nossa maneira.

3. Um Salvador acabado de nascer, diz o anjo, canta os anjos. Um menino que tem o poder sobre os seus ombros. Contemplai bem, amados irmãos e irmãs, o Sinal da salvação e do poder dado por Deus aos pastores de Belém, e a nós também: nada mais, nada menos do que um menino acabado de nascer envolto em faixas, igual, portanto, a todos os recém-nascidos, que necessitam de todos os cuidados! Necessitam de todos os cuidados, e põem tanta gente em movimento! Mais espantoso ainda pode ser o facto de este bebé, em quem somos convidados a ver a salvação com poder, ter nascido num estábulo, aparecendo, por isso, deitado numa manjedoura, e não num berço! E espantoso continua a ser que o Sinal da salvação e do poder a nós dado por Deus seja um bebé, pobre e necessitado, não apenas de alguma coisa, mas de alguém! Portanto, à primeira vista, aos pastores não é dado ver nada de extraordinário que os possa convencer de que está ali um Salvador com poder. Nem aos pastores nem a nós, que não temos para ver mais do que os pastores, quando ousamos contemplar demoradamente o cenário do Presépio.

4. O Sinal de Deus não passa, como vemos, por uma cena grandiosa de poder, mas pela máxima fragilidade e pobreza! O Sinal de Deus é um Menino, acabado de nascer, de tudo necessitado! O Sinal de Deus é que Ele próprio se faz pequeno no meio de nós. Nunca ninguém viu um Deus assim tão pequenino! Viu-o Maria, viu-o José, viram-no os pastores, e podemos vê-lo nós também, para assim o podermos compreender, acolher e amar. E não nos esqueçamos de que este Sinal dado aos pastores e a nós também continua aí bem diante de nós, não apenas no Presépio, mas nas encruzilhadas da vida, pois, quando este Menino crescer e falar, ouvi-lo-emos dizer, para espanto nosso: «Todas as vezes que [não] fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes [deixastes de fazer]» (Mateus 25,40.45).

5. Os antigos Padres da Igreja, de tradição e língua grega, frequentavam a tradução grega do Antigo Testamento, e citavam amiúde um dizer do profeta Isaías em que se lia que «Deus abreviou a sua Palavra» (Isaías 10,23). E comentavam e glosavam mais ou menos assim, com os olhos postos no nascimento de Jesus: a Palavra de Deus é o seu próprio Filho, Palavra eterna, que se fez pequena, tão pequena que cabe numa manjedoura! A Palavra fez-se criança, para poder ser compreendida, acolhida e amada! Escreveu o insigne mestre das escolas de Alexandria e de Cesareia Marítima, o grande Orígenes (185-254): «Suponhamos que se fez uma imagem de tal modo grande que, dada a sua imensidão, dentro dela conteria o mundo inteiro, e que, devido à sua imensidão, não podia ser vista por ninguém; e que se fez também uma segunda imagem, em tudo semelhante à primeira, pela configuração dos membros e pelos traços do seu rosto, pela forma e pela matéria, sem, todavia, ser tão grande: aqueles que não podiam examinar e contemplar a primeira devido à sua imensidão, podiam, pelo menos, ao ver a pequena, acreditar que viam a grande, dado que as duas eram absolutamente semelhantes quer pelo traçado dos membros quer do rosto, quer pela forma e pela matéria. Do mesmo modo, o Filho, despojando-se da sua igualdade com o Pai para nos mostrar o caminho do conhecimento (cf. Filipenses 2,6-11), torna-se a imagem e a expressão da sua substância (cf. Colossenses 1,15); assim, nós, que não podemos ver a Glória da Luz pura que se encontra na grandeza da sua divindade, pelo facto de ele se tornar para nós o reflexo, recebemos o meio de contemplar a Luz divina ao contemplar o seu reflexo (cf. Hebreus 1,3). Esta comparação das duas imagens, aplicada a objetos materiais, deve ter o sentido seguinte: o Filho de Deus, entrado na forma minúscula de um corpo humano, indicava em si mesmo, mediante as suas obras e o seu poder, a grandeza infinita e invisível de Deus Pai nele presente» (Perì Archôn, I, 2, 8). Na expressão bela de Orígenes, aí está diante de nós o Filho de Deus, um Deus pequenino, mas em tudo igual ao Pai. Não podendo ver diretamente a Glória e a Luz de Deus Pai, é-nos dada a graça de o poder ver através do seu reflexo.

6. Não podemos, portanto, ver diretamente o Pai, dada a imensidão da sua Luz e da sua Glória. Mas podemos vê-lo através do Filho, Palavra eterna, que se fez pequena, mas em tudo igual ao Pai (cf. João 14,9; 10,30.38). Deus abreviou então a sua Palavra, que é o seu próprio Filho, Jesus Cristo, Palavra eterna, que se fez pequena, para caber numa manjedoura, que se fez criança, para caber no colo de uma mãe, nos braços de um pai, para poder ser por todos acolhida, amada e compreendida.

7. Contemplai, contemplai, amados irmãos e irmãs, contemplai longamente o Presépio de Belém, e vereis o Menino deitado na manjedoura daquele estábulo de 12,30 metros de comprimento por 03,50 metros de largura [ainda hoje patente na cripta ba Basílica da Natividade, em Belém], e vereis o carinho de Maria e de José, o sorriso largo dos pastores, os presentes dos magos, o terno aconchego do manso boi e do pacífico jumento, as ovelhas meigas vestidas de um manto de brancura… Vereis e ouvireis ao vivo a música dos anjos e o celeste recital que ali se deu!

8. Acolhei, amados irmãos e irmãs, acolhei este vosso irmãozinho! Olhai para ele com o olhar embevecido de uma mãe, de um pai, de um irmão, de uma irmã. Afagai-o. Ele é a Luz desta Noite Santa de Natal. A Luz do Natal não é a luz natural, do sol ou da lua, da noite ou do dia, nem nenhuma das luzes que neste tempo festivamente alumia a via pública. A Luz do Natal é a Luz primeira e verdadeira-que-vem-a-este mundo (João 1,9) e alumia e aquece a Criação inteira. É por isso também que estão lá, no presépio de Belém, o boi e o burro e as ovelhinhas também. Está lá representada a Criação inteira, pois foi «por Ele que tudo foi feito» (João 1,3), e foi «n’Ele que todas as coisas foram criadas» (Colossenses 1,16). E Deus assinala bem, através de Isaías, que «o boi e o burro vão comer à mão do dono», para logo se lamentar, dizendo: «mas o meu povo, não quer saber de mim, vira-me as costas», e perde-se nos buracos de ozono (cf. Isaías 1,3). Esta Luz nova é Jesus. É Ele o gerador, o único gerador desta Luz nova, deste Lume novo, deste Amor imenso, que chama e ama, e que desde Belém se estende pela Terra inteira, e alumia e acende cada humano coração de Paz e Bem. A Luz e o Lume e o volume do Amor novo dessa Central Luminosa e Térmica expandem-se por invisíveis fios de altíssima e finíssima tensão que vão de artéria em artéria, de mão em mão, de coração a coração. Minha irmã, meu irmão, não deixes gelar ou coalhar essa Luz, esse Lume, esse Amor, no teu chão, na tua mão, no teu coração.

9. É assim também, amados irmãos e irmãs, que os Padres antigos usam transpor o imaginário da manjedoura para o Altar, mostrando no Altar a imagem da manjedoura. E aí está outra vez o Filho, agora Pão pequenino partido aos bocadinhos, e a nós dado em alimento por amor. Dom e Amor. Dom de Amor. Dom que é Amor. Na verdade, o Amor é também a Palavra de Deus abreviada, súmula e recapitulação da inteira Escritura Santa, como explica Jesus ao fariseu que quer saber qual é o maior mandamento da Lei. Jesus responde: «Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua inteligência. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos depende toda a Lei e os Profetas» (Mateus 22,37-40). Portanto, a inteira Escritura Santa, 419.687 palavras na Bíblia Hebraica, cerca de 800.000 na Bíblia Católica, pode abreviar-se, condensar-se e resumir-se na palavra Amor, Amor de Deus e amor a Deus e ao próximo, vivido como Jesus o viveu e nos mostrou através da sua Vida dada em alimento e alento. É este Amor que cabe no Altar ou na Manjedoura que é o Sinal Hoje dado a toda a humanidade.

10. Chegados aqui, é claro que uma pergunta pode saltar fora com toda a naturalidade: como podemos amar a Deus com toda a nossa inteligência, se não conseguimos vê-lo e encontrá-lo? Como podemos amar a Deus com todo o nosso coração e com toda a nossa alma, se este pobre coração consegue apenas entrevê-lo só de longe e de forma difusa, como num espelho (cf. 1 Coríntios 13,12), porque vivemos num mundo em que se atravessam diante dos nossos olhos tantas nuvens de frieza, indiferença e desamor, que toldam o seu rosto diante de nós?

11. É nesta situação nebulosa em que vivemos que «o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza […] com gemidos sem palavras (stenagmoì alalêtoí)» (Romanos 8,26), entenda-se: lalação, modulação do sopro, redução das palavras ao seu sopro, ao seu espírito, e ao Espírito que as inspira. Assim se coloca Deus ao nosso nível. Já não está longe de nós. Já não é um desconhecido, pois sentimos a sua mão, o seu sopro, o seu calor, o seu alento (cf. Génesis 2,7). Não está fora do alcance do nosso coração. Fez-se menino por nós, e assim dissolveu toda a ambiguidade. Tanto se aproximou de nós que se fez mesmo o nosso próximo, restabelecendo também deste modo a imagem do homem que, com frequência, se nos revela tão pouco amorosa. Compreendemos então que, por amor de nós, Deus se faz dom, doando-se a si mesmo a nós. Perde tempo connosco. Debruça-se sobre nós. É nesse sentido que o Natal se assumiu também como a festa dos dons, imitação de Deus que a si mesmo se doou por nós. É claro que os dons ou presentes que nesta noite de Natal trocamos entre nós devem traduzir o dom de nós mesmos uns aos outros, uns pelos outros.

Deus abreviou a sua Palavra.
A Palavra de Deus é o seu próprio Filho,
Jesus Cristo,
Palavra eterna,
Que se fez pequena,
Para caber numa manjedoura,
Que se fez criança,
Para caber no colo de uma mãe,
Nos braços de um pai,
Para poder ser por todos acolhida,
Amada
E compreendida.

Neste tempo de pandemia,
Abeiremo-nos do Presépio,
E procuremos compreender
A riqueza da pobreza,
E que é nessa produção de pobreza
Que encontramos o único Senhor,
Que é o nosso Salvador.



Igreja Catedral de Lamego, Homilia na Missa da Noite de Natal, 24-25 de dezembro de 2021

+ António, vosso bispo e irmão

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