A Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Jesus Cristo, popular e tradicionalmente, conhecida como Corpo de Deus, voltou com o seu esplendor. Nos anos de 2020 e 2021, a pandemia remeteu-nos para o confinamento, para os isolamentos, para o distanciamento físico. A proximidade ao verão, trouxe mais liberdade de movimentos, mas ainda assim as procissões só foram autorizadas/retomadas, conforme as disposições da Conferência Episcopal Portuguesa, a partir de 15 de setembro de 2021. A partir daí, umas vezes mais timidamente, outras mais festiva e descontraidamente, as procissões foram realizadas.
Por excelência, a Procissão das procissões, é esta do Santíssimo Sacramento, do Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela antiguidade, pelo significado, pela identidade. É Cristo que vai, que preside à Procissão, é o Seu Corpo, a Sua presença real que convida, que nos precede, que nos guia e nos impele.
Muitas das ruas das nossas aldeias, vilas e cidades, foram adornadas com tapetes de flores, com colchas nas janelas e varandas, e muitas pessoas acorreram para integrar a Procissão. Porque uma procissão não é para ver, é para percorrer, para viver! Na cidade de Lamego, associações eclesiais, o cabido, as paróquias da cidade, sob a presidência do Senhor Bispo, D. António, e com a presença das autoridades autárquicas e militares, a Procissão trouxe para as ruas a Eucaristia antes celebrada na Sé de Lamego.
A Procissão do Corpo de Cristo teve, de início, o propósito de vincar a presença real de Jesus na Eucaristia, contra aqueles que colocavam dúvidas ou negavam tal presença. Um pouco antes, na Eucaristia, começou a elevar-se a hóstia para que todos contemplassem, em adoração, o Corpo de Jesus. A solenidade do Corpo de Deus começou a celebrar-se em 1246, na cidade belga de Liège, tendo sido alargada à Igreja universal, em 1264, com o Papa Urbano IV, através da bula “Transiturus”, dotando-a de missa e ofício próprios. A adoração da Hóstia consagrada ultrapassou o tempo da celebração da Eucaristia e o espaço físico das Igrejas, para se fazer através das Procissões do Santíssimo.
No século XVI, a solenidade do Corpo de Deus ganhou novo ímpeto, sublinhando a fé católica, que professa a presença real de Jesus na hóstia consagrada, durante a celebração, mas perdurando na hóstia, seja no Sacrário, seja na Adoração Sacramental, em celebrações específicas, na referida procissão, ou quando se leva a comunhão aos doentes. Não é uma presença provisória ou momentânea. Também no pão e no vinho consagrados Deus “encarna” por inteiro e não apenas por um curto espaço de tempo.
No seu blogue, Mesa de Palavras, acerca desta solenidade, diz o nosso Bispo:
“Hoje é o Dia da Eucaristia. Da reunião dos irmãos, santos, amados e chamados por Deus, à volta de Jesus, pão da vida (João 6). Vem de longe esta avenida florida de alegria, de trigo maduro e de vides ajoelhadas com uvas vermelhas, suculentas, deliciosas. «Sobre este monte (Sião), o Senhor dos Exércitos preparará para todos os povos um banquete de carnes gordas e vinhos finos», anuncia Isaías 25,6. Também a Sabedoria, que vem de Deus, se dá ao trabalho, e manda anunciar nos pontos altos da cidade: «Vinde, comei do meu pão, bebei do vinho que preparei» (Provérbios 9,5). Banquete que se entrevê já na carne preparada em abundância e nos 60 quilos de farinha que, lado a lado, Sara e a mãe de família do Evangelho, metem ao forno (Génesis 18,6-7; Mateus 13,33; Lucas 13,21). E aí está também mesmo a chegar Melquisedeque (malkî-tsedeq), rei e sacerdote de Shalem, futura Jerusalém, yerûshalaim, popularmente interpretada como «cidade da paz (shalôm)», ainda que o seu nome signifique «Shalem a edificou». Tem encontro marcado com Abraão, que também acaba de chegar, cansado dos trabalhos das lutas tribais. Por isso, para aliviar um pouco o seu estado anímico, e para o elevar até Deus, Melquisedeque traz a Abraão pão e vinho e paz e bênção”.
Acerca do Evangelho, proclamado e escutado (Lucas 9,11b-17), que nos traz a narração da multiplicação dos pães, um dia na vida de Jesus:
“Prestemos atenção e reparemos bem que, aos olhos atónitos dos discípulos e dos nossos, Jesus não fez uma operação de multiplicação dos pães, mas de divisão e partilha dos pães! Só Jesus sabe de uma divisão fazer uma multiplicação! O milagre de Jesus, aquilo que suscita surpresa e maravilha, não consiste em aumentar a quantidade do pão e do peixe (que permanece a mesma), mas em abrir os olhos aos seus discípulos e a nós que, como cegos, só conhecemos e pensamos na lógica do vender e do comprar, e não chegamos a saborear a lógica da gratuidade, que é a do nosso Pai celeste que faz nascer o sol para os bons e para os maus, veste os lírios do campo, alimenta os passarinhos. Entrar nesta lógica é acreditar na força do dom, e ir por este mundo consumista, partindo o pão e partilhando-o, com a clara consciência de que onde isto acontecer, não só se instaura o necessário para todos («todos comeram e foram saciados»), como se instaura também o «excesso», a superabundância da graça («os discípulos encheram doze cestos») (Lucas 9,17)”.
D. António Couto, nestas pistas de reflexão, ajuda-nos a ver melhor e a fazer de um jeito novo, o jeito de Jesus: “Jesus leva até ao fim a lógica nova do Evangelho, que é a medida sem medida do amor de Deus, que muda radicalmente a nossa maneira de pensar e de viver. Este é o lado subversivo do Evangelho. Não, Jesus não se contenta, nem quando nós nos propomos comprar pão para alimentar os outros. Para Jesus não é compreensível que uns tenham mais, outros menos e outros nada, e que esta situação se possa amenizar pontualmente. Dar tudo é a medida de Deus e a lógica do Evangelho. Por isso, Jesus diz: «Isto é o meu corpo dado por vós. Fazei isto em memória de mim» (Lucas 22,19b); «Este é o cálice da nova aliança no meu sangue, por vós derramado» (Lucas 22,20). Vida partida, repartida e dada por amor. Eis o inteiro programa de Jesus. Eis tudo o que devemos fazer, imitando-o”.
E concluímos, ainda, com as palavras do Sr. Bispo: “Sim, Hoje é Dia de a Igreja estar unida e reunida à volta do seu único Senhor, Jesus Cristo, que por nós parte e reparte a sua vida”.
in Voz de Lamego, ano 92/32, n.º 4663, 22 de junho de 2022